Os enfermeiros querem ganhar mais do que os médicos?

Um enfermeiro que aspira ganhar mais, ter mais poder, prescrever exames e medicamentos, substituir um modelo holístico por um modelo "prescritivista" tem outro nome. Chama-se "médico". Passando o enfermeiro a médico, é preciso arranjar… enfermeiros

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StockSnap/Pixabay

O que mais assusta na "ditadura da normalidade" é que nem sempre o "normal" que se dita corresponde intrinsecamente à verdade. No entanto, o que se afirma compulsivamente torna-se, verdade ou mentira, verdadeiro. Recentemente, uma notícia intitulada "Enfermeiros querem ganhar mais do que os médicos", saída no Jornal de Notícias, foi de tal modo atacada e ridicularizada pelos referidos (enfermeiros) que cheguei a acreditar que a mesma assentava numa escandalosa mentira.

A notícia inclui uma comparação entre os ganhos pretendidos pelos enfermeiros (no início da carreira) nas recentes tabelas salariais apresentadas pelos sindicatos e os ganhos de médicos com um tempo correspondente de experiência. É certo que a notícia é pretendidamente incendiária. Também é certo que a notícia não relativizava adequadamente os ganhos em questão, comparando todas as variáveis em jogo. E é com este argumento que centenas de enfermeiros arremeteram virulentamente contra o dito jornal, acusando-o de mentir descaradamente. Houve, inclusivamente, um incentivo de ataque ao jornal nas "críticas" na página do Facebook e uma campanha generalizada de descredibilização do dito órgão de comunicação social. Estranhamente, entre centenas e centenas de comentários nas redes sociais, não houve um único indivíduo que tivesse desconstruído factualmente os dados do jornal. Limitavam-se à acusação, sem qualquer concretização.

Quem não estiver atento, acreditará certamente no que é dito pela blasfemada classe. A verdade pertence à maioria. Dita e redita, é "normalizada". Mas o pior é que, realizada a comparação devida, o que o jornal afirma não é mentira; há, de facto, um tempo preciso e comparável, em que os enfermeiros pretendem ganhar mais do que os médicos. E daí? Não merecem? Talvez até mereçam. Ou talvez não. Porque uma classe que aspira passar por verdade uma imposição, percepção, corporativa não abona nada à sua credibilidade.

Podemos, todavia, limitar-nos a acreditar e defender as premissas dos enfermeiros, pois, de algum modo, a importância do seu trabalho "salvífico" poderá sancionar, indultar, a falta de rigor nas reacções encaloradas. A nobreza, a presteza, da profissão justifica certa apologia. Mas, aqui, surge um outro problema. Os enfermeiros não estão a defender a enfermagem, os enfermeiros estão a defender uma outra coisa, mais parecida com a medicina, que pretendem alcançar. Um enfermeiro que aspira ganhar mais, ter mais poder, prescrever exames e medicamentos, substituir (não admitidamente) um modelo holístico por um modelo "prescritivista" tem outro nome. Chama-se "médico". Passando o enfermeiro a médico, é preciso arranjar… enfermeiros. Enfermeiros que possuam o rigor apropriado ao seu dever, que não escusem a verdade, que saibam compatibilizar os seus direitos com os direitos do paciente. Enfermeiros de "luxo" não servem os pacientes, servem as suas necessidades. O modelo beneficente da enfermagem morre, perde o seu significado, a sua seriedade. É, agora, um órgão de poder, da ficção capitalista.

Assim sendo, se o enfermeiro quer ser "liberal" e "luxuoso", convém que se comporte segundo esse molde. Terão de acabar as guerrilhas sindicais, os erros ortográficos espalhados pelas redes sociais, as reacções coléricas "enrebanhadas", a incultura generalizada, e, muito especialmente, as ameaças. Uma enfermeira dizia na net: "Estamos assim pq 'dé-mos' pérolas a porcos". E oh, que pérola! Há mais dias dizia um enfermeiro a um cidadão antagonista: "Quando precisar de nós, há-de afogar-se no seu próprio vómito". São estes os profissionais que querem ganhar mais de dois mil euros no início da carreira? 

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