Mercado negro

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Luzes na noite. Claridades moventes que se coam pelos vidros das janelas, esgueirando-se entre cortinas e reposteiros, reflectem-se no espelho da cómoda-toucador e atingem-me, deitado, em plena luta com a escuridão afogadora de mais um dia. Sento-me na borda da cama e procuro confirmar movimentos inconsistentes com a hora tardia e a localização sagrada. A ocasião só era boa para o mocho, para o ladrão, para o incendiário florestal, para o amante e para o borrachão, nenhum deles com a minha bênção (menos ainda o indivíduo que pudesse ser tudo isso ao mesmo tempo), exceptuando o animal alado, desde que se mantivesse lá fora. Mas o momento era de acção, não de meditação.

Saí à varanda do quarto de dormir com a determinação do detective de livro policial. Através da neblina gerada nas amplitudes térmicas destes dias de dessincronização climática, era identificável um vulto que, manipulando um potente foco de luz, fazia da mais altaneira das minhas torres um farol de orientação de tráfego marítimo, mas sem licença das autoridades competentes, a maior das quais, naquele espaço-tempo, era mesmo eu. Era forçoso confrontar o patife imitador de faroleiro amador, ou, melhor, o patife imitador amador de faroleiro, secretamente desejando que se tratasse de um patife amador imitador de faroleiro.

Corri ao corredor oeste, desci a escadaria de pedra, abri o ferrolho e tirei a tranca da porta de carvalho reforçada com ferragens do tempo da peste-negra. Saí ao terreiro derrapando na relva, contornando uma esquina de dureza granítica e depois outra, passando um arco que dava para um quinteiro de acesso a outra porta cuja pesada aldraba rodei, empurrando a jamba móvel para dentro. Enorme escadaria de acesso à torre me esperava, mas, apercebi-me de que não a podia vencer em passo de corrida sem risco de apoplexia – que é forma mais poética de dizer acidente vascular – ou breca – que é forma mais plebeia de dizer cãibra – que em muito penalizariam a eficácia, para não falar da dignidade, com que me apresentaria, lá em cima, ao patife solitário ou – na pior das hipóteses – aos patifes em número indeterminado organizados em comandita.

Antes de avançar, recorri à minha arma secreta, preparada para estas eventualidades: peguei no apito ultrassónico que trazia sempre no bolso de peito do meu roupão e soprei com vontade. Só o meu mordomo Galhardo, treinado, a peso de ouro, na Brigada Cinotécnica da GNR, conseguiria ouvir o meu pedido secreto de socorro, sem que os meliantes faroleiros, amadores ou profissionais fossem alertados.

Não cheguei a subir. Novas luzes e vozes que vinham de uns barracões usados para armazenar o azeite produzido na propriedade atraíram a minha atenção. Era ali que estava o grosso das forças sitiantes.

Um bando de homens entretinha-se, no interior dos barracões, a fazer aquela espécie de ruídos que só os contrabandistas de azeite fazem, o que me permitiu identificá-los logo. Dois personagens suspeitos assomaram à porta. “Um dos camiões que ‘vem’ para cá já está a chegar”, disse um. “Um dos lotes que vai sair daqui está marcado com um X”. Aproximei-me deles e disse-lhes: “Ei, rapazes, vocês estão a fazer mal a concordância entre sujeito e verbo”. Eles ficaram surpreendidos, mas quando um outro pegou numa caçadeira com a intenção aparente de a usar, talvez sobre mim, eles dissuadiram-no, dizendo: “Quieto! Este meco quer-nos explicar uma coisa de gramática ou assim. Tu fazes ideia quanto estão a cobrar por explicações de Português? Vê-se bem que és solteiro...” E, rodeando-me, convidaram-me a prosseguir.

Disse-lhes então: “Vejam bem. Se vocês dissessem ‘um dos carros vem para cá’ ou ‘um dos lotes vai sair’, estaria tudo certo. O problema e que vocês utilizaram a expressão ‘um dos’ seguida de ‘que’, e isso já é outra história. Se dizem ‘um dos que’ e a seguir têm um verbo que se lhes refere, estão a falar de um plural, ‘aqueles que’, portanto o verbo tem de ir para o plural. Assim, para as frases estarem correctas tem de ser: ‘um dos carros que vêm para cá já está a chegar’ e ‘um dos lotes que vão sair daqui está marcado com um X’.

“E se eu disser: um dos filmes que eu mais gosto é o ‘Lágrimas e Suspiros’, de Ingrid Bergman?”, perguntou um dos quadrilheiros que me fixavam.

“Não aconselho, por duas razões: primeiro, porque não podemos gostar alguma coisa, mas de alguma coisa. Logo, teria de ser “um dos filmes de que eu mais gosto.” Depois, o nome do realizador é Ingmar Bergman. Ingrid Bergman era o nome de uma actriz.

“Pois, não estive tempo suficiente no Novas Oportunidades para aprender isso, mas o que eu queria dizer é que no meu exemplo o verbo fica no singular”...

“Claro”, respondi, “porque o verbo que vem a seguir não se refere aos filmes, mas a eu... Quando o senhor bandido introduziu o eu na frase, tudo mudou...”

“Bandido?!...”

“Sim, bandido é um membro de um bando... Pronto, o senhor assaltante... Não sei como quer que o trate, não chegámos a ser apresentados...”

“Assaltante, eu?... Eu que até tenho um certificado de formador e só vim fazer este biscate para desentorpecer as pernas?... Eu tenho é espírito empreendedor, e como não sei fazer pipocas...”

“Muito bem. Seja. Quando o senhor empreendedor introduziu um novo pronome pessoal – eu –, o verbo deixou de se referir a filmes. Mas se fosse um verbo que dissesse respeito aos filmes, teria de ser no plural”

“Pode dar um exemplo ou dois para se perceber melhor?...”, pediu o coxo zarolho com uma barba de três dias, que já foi apanágio de presidiário, mas que agora é de deputados, ministros e porta-vozes partidários.

“Com certeza: ‘Este é um dos filmes que já saíram em vídeo’; ‘Este é um dos filmes que passaram no Cinema Júlio Dinis, antes de ter sido encerrado’.”

“Então não pode ser ‘este é um dos filmes que saiu em vídeo?’ Porquê?...”, perguntou um rapaz com o cabelo penteado para trás como nos anos 30 ou como certos agentes imobiliários de sucesso.

“Porque, na verdade, está a falar do conjunto dos filmes que saíram em vídeo. O tal filme é apenas um deles, um caso particular desse plural. Para se referir apenas à unidade, teria de dizer ‘este filme saiu em vídeo.’ Ou ‘este é um filme que passou no Cinema Júlio Dinis, antes de ter sido encerrado”.

“De que filme é que estão a falar?”; perguntou um mais entradote, com ar de empreendedor da noite. “É que mesmo antes de fechar, no Júlio Dinis só passavam filmes pornográficos. Pode ser que eu tenha visto...”

Nisto, uma estridência capaz de gelar o célebre assador em que os comentadores desportivos gostam de pôr toda a carne ao mesmo tempo fez-nos a todos agarrar a qualquer coisa que estivesse mais à mão. Ali estava a megera, a chefe da quadrilha, a cabecilha do bando, a cabeça de lista às eleições da mais descarada, desleal, ingrata e falsa funcionária de serviço doméstico do Sul da Europa e da costa ocidental da África até ao arquipélago dos Bijagós, inclusive: a minha governanta Zulmira! Com dois gritos, pô-los a todos na primeira forma. Com mais um, fez que me imobilizassem.

Fui arrastado para dentro, onde assisti ao frenesim de todo o bando, enchendo com o meu melhor azeite os depósitos de combustível de motos, motorizadas e motocicletas de sucata, que como tal seriam registadas nos manifestos de carga de contentores contrabandeados para a China, para abastecer, no mercado negro, as classes emergentes desse invejado ingrediente-mestre da dieta mediterrânica.

No meio de tanta tragédia, senti a felicidade de ver presa a falsa governanta antes que ela me incendiasse a casa por exigência dos seus maus fígados, sósia que era da sinistro-paranóica Mrs. Danvers do filme “Rebeca”, de Alfred Hitchcock, baseado no romance homínimo de Daphne du Maurier. Como foi foi presa em flagrante, daqui a quatro anos devemos ter julgamento.

Valeu-me a presença de espírito do Galhardo, que lá acabou por aparecer um pouco ensonado, e a pronta intervenção das autoridades, que, como era princípio de mês, ainda tinham dinheiro para comprar combustível para os veículos, comparecendo em força.

Nessa noite, aos homens que estavam a ser conduzidos aos carros celulares entre as brumas da memória ouvi ainda: “Um dos carros da polícia que entrou aqui foi pintado por um cunhado meu”. Ao que outro respondeu prontamente: “Não, estúpido: ‘Um dos carros da polícia que entraram aqui’! ‘Que entraram aqui’! Não adiantou nada que o homem nos estivesse a dar explicações enquanto era roubado indecentemente?!... Grande bruto!... Vê-se logo que não andaste nas Novas Oportunidades...”

Correio Premente

De Godofredo Broinhas, lugar de Cai Logo, freguesia de Azinheira dos Barros, concelho de Grândola: “Só tenho uma filha. Também só tenho uma mulher. Mas escrevo-lhe porque a minha filha se vai casar e eu quero que ela tenha uma festa de arromba. Já fomos procurar uma quinta de casamentos e vou fazer de conta que 3000 euros por um dia não é um roubo, pois não vai haver caviar nem champanhe francês. Já fomos ver vestidos de noiva e vou fazer de conta que dois mil euros não é um roubo, pois não vi pérolas nem bordados a ouro. Também me queriam impingir uma limusine Citroën 2CV de dez metros de comprimento, mas não fui na conversa. Serve perfeitamente um Chevrolet de 1950 dos Bombeiros de Valongo. Agora o que eu queria era que o senhor escrevesse um discurso para eu ler e fulminar toda aquela gente que vai lá para comer e para ficar nas fotografias e que dois meses depois se cruza connosco na Costa da Caparica e nos rouba o lugar do estacionamento nas nossas barbas e já não nos conhece de lado nenhum. Queria um discurso assim como esses que tem publicado. Não precisa de sair muito fora disso. Ninguém vai perceber e não, e isso é que me convém, que é para aqueles espertos depois não irem para o café comentar que não estava bem, que podia ser melhor. Ora, se eles não perceberem nada ficam quietos como ratos e a gente já pode dormir um bocado. Quanto é que custaria uma coisa mais ou menos assim? Também lhe posso pagar em materiais de construção. Qual é a capacidade, em litros, da sua bagageira?”

Lamento desapontá-lo em ocasião tão marcante, mas estou preso ao mais estrito dos códigos deontológicos. Se a NASA me convidasse para visitar a Estação Espacial Internacional, eu não poderia aceitar, sob pena de severas sanções sindicais. Estou igualmente impedido de receber presentes de valor igual ou superior a 150 mil euros, com excepção única de imóveis. Não faço casamentos nem vou ao domicílio.

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