Uma partida de toque-emboque

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Bem sei que todos se queixam por uma razão ou por outra, quanto mais não seja porque tenho alegadamente descurado a parte mais eminentemente prática da minha missão didáctica ou porque me atraso no cumprimento do meu dever de dar de beber a quem tem sede, mas, para ser verdadeiro – para continuar a ser verdadeiro – não está a ser fácil pescar no mar revolto dos dias calmos as linhas que, coladas umas às outras, possam dar um arremedo de texto que jeito tenha e que torne tartamuda a terna turba internética que toma tortuosos textos temáticos como tónicos torácicos.

A Natureza veio em meu auxílio. Da noite escorreram uns violetas que amadureceram em azuis que foram clareando e transparecendo até darem este dia feliz que expõe a todos os sentimentais a profusão de cambiantes das penugens do meu passaredo livre ou dos verdes que lhe dão base, camuflagem e guarida, o mundo mágico das ervas, arbustos e árvores de que as aves e eu vivemos. É o dia certo para convocar um grupo sólido de amigos. Não para seguir a sugestão de “The Hunting Sketch”, dos Monty Python, mas para lhes propor, apenas, uma partida do muito civilizado jogo de toque-emboque.

Não poucos dos meus leitores, conquistados que estão pelo futebol, o basquetebol, o atletismo, o hóquei em patins, o ténis, o ciclismo, o bilhar, o golfe, o tiro com arco, a malha, a petanca, o padel, o League of Legends, o World of Warcraft ou o Minecraft, perguntarão, a medo, o que é, exactamente, o toque-emboque e por que razão não lhes foi apresentado, na juventude, pelos seus respectivos professores de Educação Física ou por transmissões televisivas de serviço público. Contemptivelmente, pela omissão participativa de vários Governos, tem-se deixado na parte mais escura e poeirenta do sótão da obsolescência este jogo que favoreço, outrora tão aristocrático, tão dos palácios de reis, príncipes, duques, marqueses, condes e fidalgos em geral, ao que se junta o escrúpulo republicano, que tem funcionado como areão nos maquinismos desportivos mais democráticos.

Valha-nos o movimento romântico-monárquico, que pretende emparelhar o toque-emboque com o golfe, mormente no que diz respeito ao seu papel social de comunhão de elites e de celebração da natureza ordenada pelo homem, com uma pequena ajuda dos jardineiros. Nessa senda, persistem barreiras a derrubar. Desde logo, a ideia feita de que é um jogo para senhoras. Nada mais falso: tal como o PÚBLICO revelou, publicando, há uns anos, uma fotografia inédita comprovativa, o próprio Billy the Kid foi praticante. E com razão, uma vez que se trata de uma modalidade tão viril como o pólo, mas sem os cavalos.  

O que pode ser mais saudável do que ver um conjunto de maduros – salvo o venezuelano, não desfazendo, obnubilado pela ornitologia espírita e contra quem tocam todos os sinos a rebate – orientando uma bola de madeira a golpes de maço muito calculados em intensidade e direcção, numa combinada intencionalidade que não se vê tão honestamente revelada na política, na banca ou na indústria transformadora alimentar? Elementar.

Basta um grupo de convivas, um relvado aparado a pente três e os apetrechos do jogo – bolas de madeira, maços, arcos metálicos de extremidades pontiagudas cravados no terreno em disposição canónica.

Como em quase tudo o que faço hoje em dia, o meu mordomo Galhardo é peça tão indispensável a esta empresa como o tal sininho avisador. É a ele que incumbe levar para o terreno a caixa de madeira do jogo fabricado em Inglaterra pelos fornecedores reais de que nunca duvidei (de serem reais). E todo o ritual que ele põe, toda a cerimónia que ele acrescenta – respeitado o sentido das proporções que tem faltado a muitos departamentos policiais dos EUA e parece que a um em Lisboa, pelo menos – consegue fazer passar cada uma das nossas partidas por uma corrida de cavalos com a reputação da de Ascot, em Inglaterra (where else?...), mas sem os chapéus barraqueiros.

Nesses dias, mando abrir os portões do castelo à comunicação social. E já tenho ajudado, na ocasião, alguns jornalistas estagiários, como quando chamo a atenção para a incorrecção de escreverem que “no evento são esperadas milhares de pessoas”, quando o verbo tem de concordar em género e número com “milhares” (masculino do plural) e não com “pessoas” (feminino do plural). E quando eles me esbugalham os olhos, visivelmente não convencidos e tão desagradados como se os tivesse obrigado a tomar colheradas de óleo de fígado de bacalhau, pespego-lhes com um exemplo ao contrário, perguntando-lhes: devemos dizer que “os dezenas de basbaques vêem passar os centenas de turistas”? E eles, mesmo assim, no lugar de caírem fulminados com um sorriso amarelo, ficam apenas indecisos, porque estão habituados a ler jornais e revistas, a ver televisão e a ouvir rádio no carro, e a tendência não é essa. E sabemos o poder que têm hoje em dia as “tendências”.

Decido então criar uma tendência e, já agora, uma tradição, para não perder tempo. Decido instalar em terrenos castelões uma escola de toque-emboque e, antes que me tirem o pão da boca, fundo o primeiro clube federado da novel modalidade e, não vá o diabo tecê-las, também a respectiva federação portuguesa. Não imaginam os leitores a quantidade de gente que vive de fabricar federações disto e daquilo e de dar entrevistas a torto e a direito. Conheço até um indivíduo que, só à sua conta, fundou a Federação de Cardadores de Pêlo de Guanaco, a Federação de Tradutores de Ficção em Escrita Cuneiforme, a Federação de Bandolineiros Canhotos, a Federação de Reparadores Certificados de Tornos-Revólveres Semiautomáticos. Vivia de dar palestras até ter sido detido ao abrigo de um mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional, com sede na Haia, por ter dito demasiadas vezes “chamar de” e “chamado de”. Finalmente, foi chamado à razão.

Apelo aos profissionais: quando estiverem a traduzir um romance, um filme ou série de televisão e lhes parecer a palavra “croquet”, não cometam o sacrilégio de a fazer corresponder a croquete, que é algo que pertence ao reino da culinária, ou a críquete, que é algo que pertence a outro ideário e a outra federação. Em português, é – adivinharam – toque-emboque! Ah, e já agora, não escrevam “chamar de”, pois é o suficiente para borrar severamente a pintura da tradução que fizeram, ameaçando-lhe a credibilidade e a integridade. E, se me escreverem, por favor, não me chamem de Aurélio, chamem-me Aurélio, simplesmente. Obrigado.

Correio Premente

De Herculano Pombo, freguesia de Valado dos Frades, concelho da Nazaré: “Sou o marido da D. Leocádia, que lhe costumava alugar a casita na Nazaré em Agosto, não sei se está a ver. Bem, o que se passa é que ela agora deu-lhe para ler os seus fascículos e regala-se com eles. O pior é que me está sempre a chatear com isso. ‘Ó Herculano, já leste o Musgo? Esta está boa!’, ‘ó Herculano, o que eu aprendi sobre tecidos. Até me fez recordar quando era costureira!’, ‘ó Herculano, olha que esta tem mesmo piada!’, ‘ó Herculano, não tenho a certeza sobre o que é que isto trata, mas tens de ler porque o dr. Morel tem muito jeito para isto!’. O que eu lhe queria perguntar, e que já perguntei aqui na tabacaria mas não me souberam responder, era quando é que isso acaba, pois estou farto de ouvir falar no dr. Morel e nos seus fascículos. Até há pouco tempo, não se calava com os camarões do chinês, desde que fomos ao centro comercial experimentar o restaurante King Long: “Isto, sim, é que são camarões!”, “não há nada que chegue aos camarões do chinês!...”. Agora são os fascículos do dr. Morel prá frente, os fascículos do dr. Morel pra trás. Isto nunca mais acaba?...”

Caro leitor, que eu indirectamente importuno: nunca passei férias na Nazaré. Visitei sempre de passagem, para ver a capelinha onde o Vasco da Gama rezou antes de ir para a Índia e aquelas vistas das alturas, mas só. Por isso deve haver engano... Mas agradeço-lhe muito pela sugestão que me deu para um livro policial em que ando a matutar há uns bons 20 anos. Já tenho título: “Os Fascículos do Dr. Morel”. Vou desenvolver a partir daqui… Quanto a acabar, é inevitável. Não há bem que sempre dure. Ou, trocando por miúdos, ars longa, vita brevis.

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