Lugares Interiores: Madalena

O ranger da porta da entrada trouxe um neto, uma neta, um abraço, uma pastilha, um pijama, uma cama. O seu corpo foi levado, esticado, coberto e fechado como num envelope. Ali ficou entre almofadas, a arder

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Ilustração/Filipa Godinho

No caso de, à volta do corpo, se lerem sinais de um tremor de terra todos sabiam que nenhum sítio na cidade era mais seguro do que aquele que era ocupado pelas portas. Nesse caso a indicação era apenas uma: abrir a porta e colocar o corpo como se fosse ele mesmo uma tábua muito quieta, espalmada, vertical, emoldurada por madeiras e tijolos para cima e para os lados. Era esse o lugar. Sempre que, enquanto lavava a loiça ou quando libertava os objetos do peso do pó, ou mesmo no momento em que assistia ao retorno do brilho nas pratas da casa, ela sentia a eminencia crescente de um terramoto, era para esse lugar que apressadamente se levava e onde ficava horas apenas concentrada no seu respirar. À espera. À espera. Que a quietude dos ossos se alastrasse ao mundo, para dentro e fora do corpo, para dentro e fora da casa.

A porta era sempre aquela, a mais forte, que permitia dar o peito ao frio da rua e as costas à cozinha sempre morna. Os miúdos que levavam a bola debaixo do braço e seguiam a direção apontada pelos bonés até ao descampado do vizinho já nem lhe ligavam. No princípio travaram uma batalha desafiando o movimento de um músculo que fosse no rosto daquela mulher-estátua, amacacavam o passeio com caretas e frases que caricaturavam tudo que de mais parvo a infância tem, e saíam frustrados. Sabiam-se desautorizados a tocar-he mas, secretamente, já todos se tinham imaginado a chutar-lhe a bola, ou a empurrá-la para a verem desmontar-se e voltar à fragilidade da condição humana onde desde o princípio era o seu lugar. Depois desistiram. Não por fraqueza, mas porque se habituaram àquela casa de duas portas, umas vezes madeira outras vezes mulher. A casa era assim. A mulher passou a pormenor de arquitetura e não era sequer uma hipótese alguém abrandar os passos face à urgência da terra e da bola.

Quando a respiração se ritmava, o frio que embatia no peito se misturava com o calor que vinha das costas, o planeta parecia já um lugar habitável. Ela recuava para dentro, fechava a porta, arranjava a camisa e a saia como quem se prepara para entrar num palco voltando ao dia.

Havia na casa uma caixa muito importante que tinha pastilhas. Já lhe tinham escrito com marcadores de várias cores, feito desenhos, espalhado sinais para que se lembrasse que no séc. XXI já se inventaram pastilhas para os terramotos. E garantem as agulhas mais sensíveis dos laboratórios que o sismo se suspende, e após uns minutos da pastilha sob a língua o chão para de tremer, o candeeiro de abanar, o corpo deixa de ter medo da fratura dos tijolos internos. Mas ela esquecia-se. Sempre. Mas para ela a caixa era inquestionavelmente importante - uma relíquia. Era a ela que se dirigiam todos os filhos e netos quando iam lá a casa. Ás vezes, à tarde, depois de toda a casa estar já arrumada, quando a brisa espalhava ar puro através dos dois dedos abertos na janela, ela punha batom. O batom vermelho dos dias especiais e depois sentava-se em frente à caixa. Sentia-se ela mesma uma dádiva, uma flor, a arder em frente ao altar. Por vezes quase juraria escutar ao ouvido alguém dizer-lhe "muito bem" e ali ficava, a arder. A arder. Olhando a caixa sem qualquer ambição de compreender o que fazem dois números 1 seguidos de um 2 escritos na caixa. Sabia apenas que cuidava bem dela, e cuidava.

Um dia o inverno instalou-se e com ele uma nuvem mais escura desceu até à sobrancelha de um dos olhos e complicou tudo em volta. O frio. O frio no peito igual ao frio das costas e o corpo em apuros para sair da porta da rua, tremia, tremia, tremia. Quando fugia para a porta para escapar à queda da cidade a cada sismo, o frio que vinha não deixava o seu esqueleto já velho esticar-se como o dos novos que caminhavam verticais pela rua. A lareira já tinha queimado alguns cabelos, algumas linhas do vestido, uma ponta do robe, e na casa já não se sabia o que mais queimar. Quando, uma noite, do crispar da lenha entre as pedras quentes saltou uma faúlha incandescente que abriu um buraco no tapete, o mundo passou a ser outro lugar. No padrão azul e vermelho do tapete a forma abria-se, crescia, mexia-se e só quando arrebatado por um chinelo pesado, que levava o peso de uma forte mulher em cima, é que cessou. Enquanto calcava as pequeninas mas largas chamas para as apagar ela nada mais fazia do que soltar um motor automático no corpo. Tal como o coração pulsava, o pulmão respirava, o pé batia no chão. Todos eram fenômenos da mesma ordem. Não pensava neles - aconteciam. Depois do fogo apagado, quando o pé recuou, devagar, ela reparou no buraco que se abriu entre as cores do tapete. Não tinha como compreender o buraco, como surgiu, como cresceu ali. Num susto, saltou para o lado oposto ao do precipício, subiu o sofá agarrada ao medo. Medo de cair e nunca mais ser encontrada naquela profundidade que não entendia, não compreendia o tamanho nem até onde ia. Se a terra tremesse outra vez aquele buraco certamente se abriria e poderia engolir toda a casa. Levou os joelhos ao peito e prometeu dali não sair nunca mais. Vigiou de olhos arregalados e de peito acelerado o tapete que já não reconhecia mais, o chão que já não percebia, não confiava. Tudo à volta lhe parecia imprevisível, instável, líquido. Dar um passo para fora da ilha seria afogar-se sem ninguém que a visse e desse a mão.

O ranger da porta da entrada trouxe um neto, uma neta, um abraço, uma pastilha, um pijama, uma cama. O seu corpo foi levado, esticado, coberto e fechado como num envelope. Ali ficou entre almofadas, a arder. A arder. Silenciosamente. A caixa variou de lugar por três dias, três móveis, mudou a cor para laranja e os dois 1 seguidos de um 2, esses, ficaram pretos e gigantes – gritavam na caixa.

Quando a porta deixou de ranger a cada hora e passou a ranger apenas à noite, ela saiu da cama. Com o corpo verticalizado ao lado da colcha florida ela sentiu-se árvore, os pés como raízes que era preciso arrancar do chão e percorrer caminho. Quis ir. Quis arrancar-se do chão, andar sobre as manchas que pareciam mexer-se, líquidas. Lembrou-se de ter estudado o nome dos mares. Quando enfrentou o primeiro tapete, à saída do quarto, aos pés da cama, arregaçou as calças do pijama com ambas as mãos e descalça atravessou-o dizendo "Mediterrâneo". No segundo tapete, na sala, puxou bem as calças para cima e como quem atravessa um lago muito devagar, de joelhos vergados com medo de escorregar pronunciou "Atlântico". Passou a cozinha… "Índico". Abriu a porta e segurando as calças sobre os dois joelhos olhou o passeio. Betão. Um enorme tapete cinzento. Pela primeira vez em anos deixou os dois pés descalços sair de casa. "Negro". "Vermelho". A cada traço horizontal e vertical sobre o passeio ela via latitudes, longitudes, meridianos, equadores, o mundo tão tão pequeno sob os seus pés e o seu corpo a crescer, a ficar imenso. Sobre as costas abateu-se uma força que quase a tombou no chão. Não a incomodou, continuou vergada ultrapassando linhas. Outro embate, outro, outro. O riso dos miúdos que chutavam a bola a ecoar-lhe dentro do cérebro. Pareciam trovões a estalar. Outro embate. Doeu. Levou um braço ao peito e sentiu outro, outro, outro, desequilibrou-se e ficou orientada para faixas pretas e brancas alternadas no chão. Parou. Outro embate. Ela estava congelada a olhar a mudança das cores no chão, a entendê-las. Preto. Branco. Preto. "Pacífico". "Ártico". Lembrou o recreio da escola. O giz branco no quadro a somar números, a idade, ter 8 anos, mil novecentos e… chutar a bola. Sentiu outra pancada numa perna, ouviu rir e riu. Riu sem saber do quê. No chão as linhas pareciam-lhe escadas que a levariam para a frente, até à luz que piscava verde, verde, vermelho. Vermelho. No chão as linhas pareciam alinhar-se cada vez mais claramente como escadas. Esticou a perna para a primeira linha branca, as duas mãos no chão à segunda linha branca, mais um pé, mais uma mão e subiu, com o corpo em concha sobre a estrada ela subia e ouvia os outros meninos que a esperavam na rua a rir. Subiu sem medo. Ouviu gritar cuidado e respondeu "Já vou!!! Já vou!!". Alguém lhe gritava que parasse, que saísse. “Já vou!” e os risos por todo o lado. Outro embate e o chão bateu-lhe na cara e nos dentes. Na cabeça. Dentro da cabeça. Abriu os olhos e uma mancha ardia no tapete, crescia juntamente com a forma de um carro que se aproximava e trazia as mesmas letras da caixa. Uma enorme caixa que chegava. 112. Sorriu. Olhou a mancha que lhe saía do corpo. Parecia incendiar o próprio betão. Sussurrou “Atlântico… Pacífico. Pacífico.”

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