Coreia do Norte, o país onde “a emoção não se pode manifestar”

Tânia é fotógrafa de profissão e viajante de paixão. Sempre sonhou ver "aquele pedaço de terra proibido" que é a Coreia do Norte. Voltou a Portugal mais "rica" e mais esclarecida. “Eles nem sabem o que é a liberdade”

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Tânia Neves em Pyongyang

O dia em que a fotógrafa Tânia Neves decidiu conhecer a Coreia do Norte não foi um dia qualquer. Foi o dia em que a curiosidade lhe disse: “tens de ver para crer”. E Tânia viu, sentiu e percebeu que nem tudo é como imaginava. “Conhecer por dentro aquilo de que todos falam e poder viver, na primeira pessoa, aquilo que muitos só lêem em notícias” era o objectivo. Fotografar essa realidade também.

Em Novembro de 2016, partiu via China com um grupo de 36 pessoas, porque “viajar para a Coreia do Norte é caro”, mas possível. Ficou instalada num hotel “no meio de uma ilha”. Correcção. Ficou instalada no único hotel da Coreia do Norte. "Só há um hotel" — diz entre risos — "toda a gente fica no mesmo hotel. Eles dizem que têm mais, claro, mas eu, como sempre li muito sobre este país, porque sempre fui um bocado fascinada por aquele pedaço de terra proibida, por assim dizer, sei que não. O hotel é no meio de uma ilha, precisamente para ninguém sair dali. Eles, na realidade, têm um outro hotel que é muito conhecido, que está em construção desde os anos 80, é o edifício mais alto de Pyongyang. Nunca vai ser reconstruído, está vazio por dentro. Mas claro, quando os turistas chegam lá, eles orgulham-se muito e dizem sempre que 'vai abrir no Verão'. Ninguém sabe em que Verão, mas vai sempre abrir no Verão."

Acompanhada por alguns guias oficiais — sempre acompanhada —, começou a descobrir o país do qual José Luís Peixoto fala no livro “Dentro do Segredo”, um dos motivos que impulsionou a fotógrafa a fazer esta viagem.

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“Na Coreia do Norte não podemos fazer levantamentos de dinheiro, não existe multibanco, não aceitam cartões e, por lei, não podemos ver o dinheiro deles. Eles só aceitam dólares, euros e iénes. Há um plano de viagem, mas nós nunca sabemos muito bem o que vamos fazer, porque há muita coisa que é mudada à última da hora” e, talvez por isso, a viagem seja tão dispendiosa e tão controlada – nada pode fugir ao controlo dos oficiais e só é possível ver o que “eles querem que seja visto”.

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“Na Landescape (agência à qual Tânia está associada), podem comprar uma viagem à Coreia do Norte durante cinco dias, com tudo incluído, por 1510 euros, o que ainda inclui uma visita à China mais quatro dias”, explica a fotógrafa.

Mas Tânia queria registar a Coreia do Norte pelos seus próprios olhos. “Nas viagens, no geral, eu faço um tipo de fotografia muito cândido, eu não peço às pessoas se as posso fotografar antes, gosto mais de ir fotografando os momentos naturais e genuínos” começa por explicar. “Na Coreia do Norte, obviamente que é diferente, porque quando lá vamos temos guias locais, que nos instruem bastante bem sobre o que é possível ou não fotografar”. Os militares não podem ser fotografados, as estátuas têm de ser captadas na íntegra, sem que nenhuma parte seja cortada da imagem, e as estradas também estão excluídas de registos fotográficos, a não ser que sejam estradas dentro da capital.

O problema? A Tânia está registada como fotojornalista em Portugal e “por lei, os jornalistas não podem entrar na Coreia do Norte”. Por esse motivo, a fotógrafa escreveu “uma declaração” que provava que o jornalismo que pratica é na área cultural e que não tem qualquer “envolvimento na área da política”. Nessa declaração manifestava também a vontade de levar consigo as suas câmaras, para poder “documentar a experiência” no blogue Travelling With Tânia. E foi aí que percebeu que “qualquer pessoa que visite a Coreia do Norte pode levar câmaras”, ainda que antes da viagem seja enviado aos visitantes “um manual muito específico” com o tipo de lentes que não podem levar, como por exemplo objectivas superiores a 250 de distância focal, “para não podermos capturar imagens muito distantes”. Tânia levou consigo uma Olympus, “com um sistema recente” e uma 360, “que eles, curiosamente, autorizaram”.

A Coreia em dias de festa

Guarda as fotografias e as memórias de uma viagem que quer repetir e até já sabe quando: no dia das forças armadas, 15 de Abril, e no dia 9 de Setembro, dia em que se comemora a Fundação da Coreia do Norte. Porquê? "Quero ver as pessoas que não vivem na capital, porque nesses dias todos os caminhos vão dar a Pyongyang na Coreia do Norte". Isto, claro, “se ainda houver Coreia do Norte” até lá.

Guarda também as diferenças entre “Dentro do Segredo” e aquilo que viu, o que imaginava e o que sentiu. “Na nossa viagem perdemos seis pessoas, acho eu. Isto há uns anos teria sido um drama gigantesco”, mas não foi — reapareceram pouco depois. 

O grupo vistou várias escolas, espaços que também servem de tubo de ensaio para algumas questões politico/sociais. "Numa das visitas fomos a uma aula de inglês para adultos. Um dos meus colegas de viagem, que é sul-coreano (tem feições coreanas e fala coreano), acabou por despertar curiosidade. 'Quem é esta pessoa que fala a nossa língua?'. Ele aconselhou-os a estudarem inglês e a viajarem pelo mundo". E explicou que a língua coreana é muito interesaante, até porque só se fala em dois países. Tânia repete ao P3 aquilo que foi dito na sala de aula: "Há uma Coreia, que está dividida, a parte sul está ocupada, mas é Coreia na mesma." "E isto, há uns anos, tenho a certeza de que seria muito mais problemático. Ele acabou de falar e só lhe disseram 'Acabou a conversa, vamos embora', mas não aconteceu mais nada. Acho que há uns anos eles não teriam sido tão brandos”, relembra. De uma forma geral, ninguém pode levar informações do exterior. “Como eles não podem viajar, ficaram um pouco confusos, como é óbvio”, conclui a viajante.

Também a religião é proibida neste “pedaço de terra”. “Acho que houve alguém que foi detido à saída do país por ter deixado uma Bíblia no quarto do hotel”. Mas não é preciso ir tão longe para entrar em conflito com o governo norte-coreano. “Há um filme, o “The Interview”, que goza com o Kim Jong-un, se o tivesse no computador tenho a certeza de que não me deixariam entrar.”

“Antes de publicar esta viagem no blogue enviei-lhes as fotos e o vídeo, porque tinha dito que o faria, e nunca pensei que o vídeo que fiz fosse aprovado porque estão lá várias coisas que não deviam estar. Tem pessoas no metro, tem militares, tem uns planos mais ousados das estátuas e mesmo assim eles permitiram que o publicasse”, revela Tânia. A sua passagem pela Coreia do Norte, o vídeo, as fotografias e o seu testemunho, podem ser vistos no blogue Travelling With Tânia.

Cinzento é a cor dominante

Mas a fotógrafa quer mais: mais realidade, mais essência, mais tempo. “Às vezes não sabia o que havia de enquadrar ou como. Podemos fotografar, mas é tudo muito rápido. Por norma, numa viagem normal, eu vejo um sítio e digo 'olha, isto é bonito, depois tento voltar cá com uma luz diferente ou com menos pessoas'. Ali isso não acontece. Nós vamos a algum sítio e temos de fazer logo tudo no momento. Sabemos que não vamos ter uma segunda oportunidade no mesmo sítio (...) e, cenicamente, é tudo tão diferente e é isso que nós queremos absorver primeiro”.

Segundo Tânia, Pyongyang, comparada com qualquer outra capital no mundo é diferente. “Cá [em Portugal], por exemplo, as pessoas vão na rua muito automatizadas, ninguém liga à pessoa que está ao lado, vai tudo com o telemóvel na mão. Temos muitas marcas, muita luz, há um certo ritmo urbano mecanizado”. Mas em Pyongyang não. “Lá não existem marcas, não há lojas, não há branding, não há marketing (...) há propaganda, os cartazes em vez de estarem a anunciar carros, telemóveis e assim, anunciam os militares e (...) vê-se muita iconografia contra os Estados Unidos”.

Cinzento é a cor que define a Coreia do Norte. “É tudo muito cinzento, as pessoas vestem roupas cinzentas, os prédios têm um ar cinzento, mas pincelado com toques de cor onde estão as fotografias dos líderes”. E essa é o único destaque que importa. A única loja que a fotógrafa viu, “um género de supermercado”, era “fachada, literalmente para inglês ver”.

Os norte coreanos não têm opção de escolha. Não escolhem a escola onde estudam, o curso que tiram, a casa onde vivem, a comida que ingerem e “nem sabem o que é a liberdade”. “Viajar é sair da nossa zona de conforto e não é uma viagem só física, tem de ser uma viagem interior também, que nos permita confrontar a nossa própria cultura, os nossos hábitos e aquilo que aprendemos. Neste aspecto, a Coreia do Norte é das viagens mais completas, porque nós estamos, literalmente, a visitar o outro lado da história. E é muito estranho ver, conhecer aquelas pessoas, a forma como elas cresceram, a forma como elas aprenderam as coisas, a forma como elas vivem, coabitam e comunicam”.

Só assim, diz, é possível “valorizar todos os privilégios que temos e o mundo onde vivemos". "Chega uma altura em que começamos a sentir falta de coisas muito simples que temos como garantidas aqui, principalmente a comunicação e a liberdade de ir onde quisermos, à hora que quisermos”. Estar lá é um sentimento que “nos enriquece um pouco, de uma forma estranha”.

Foi numa varanda do DMZ (Delimitarized Zone), a cantar a Hello, de Adele para a Coreia do Sul, que Tânia se despediu da Coreia do Norte — e foi repreendida por cantar. “Lá a emoção não se pode manifestar”. Mas voltou a Portugal mais “rica”, mais “completa” e percebeu que “pequenas coisas têm muito significado, principalmente lá”.

Podem ver a Coreia do Norte, pelos olhos da Tânia, dia 1 de Julho, no Porto, e dia 21 de Julho, em Lisboa.

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