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Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Isto de estar entre veludos e cambraias esvoaçantes acariciando livros e bebendo-lhes as imagens literais a acompanhar o chá e as torradas é muito bonito, mas, a prazo, conduz qualquer pessoa à condição aproximada de ameixa de conserva, de uva passa, de figo de saco: a pele empalidece, as costas recurvam-se, o espírito retira-se do mundo dos vivos que giram e que dançam como o pião da canção infantil, fossilizando-se na pedra da solidariedade humana global idealizada. Admitamo-lo sem peias: a cultura livresca torna o literato em pouco mais do que imprestável no que diz respeito ao funcionamento quotidiano de uma casa e de uma família. Pode saber discorrer sobre filosofia védica, mas não sabe fazer um simples bolo de cenoura; emociona-se com as peripécias da epopeia de Gilgamesh, mas não sabe mudar a fralda a um bebé, mesmo que seja seu; identifica sem dificuldade as falhas do sistema de arrefecimento do núcleo de uma central nuclear que nos pode lixar a todos, mas não consegue encontrar o quadro eléctrico doméstico nem a vareta de óleo de motor do seu carro. O mesmo poderíamos dizer sobre olaria, aplicação de rebocos, construção de alaúdes, serralharia mecânica, curtumes, tecelagem, cromagem, taxidermia, extracção mineira, pesca de crustáceos, amanha de ciclóstomos, marcenaria com ou sem marchetaria, criação de garnisés, desmancho de carcaças de bovinos.

Chega a ser chocante que a mesma mente que organiza os mais completos gabinetes de curiosidades não consiga bordar uma fronha em ponto de cruz, levar a calda de açúcar ao ponto de pérola, uma mulher ao ponto de rebuçado ou virar um colchão com o lado de Verão para cima sem rebentar com os candeeiros das mesinhas-de-cabeceira. Divertimo-nos (ia dizer “nós, homens”, mas fui a tempo de corrigir tão tola discriminação) a resolver problemas de palavras cruzadas, mas somos incapazes de produzir um rol coerente de roupa para lavar. O Einstein conseguia fazer cálculos mentais prodigiosos, mas sabia pendurar um quadro em esquadria ou fazer umas papas de sarrabulho? Sabia tocar violino, mas conseguiria montar um guarda-vestidos do IKEA? Ah…

Ponderava eu estas verdades insofismáveis de que julgo estar a salvo com a inclusão na minha biblioteca dos volumes “A Cultura do Milho” e “A Criação de Patos”, quando o meu mordomo Galhardo me avisa:

“Está lá fora o Sr. Ernesto que gostaria de mostrar a V.ª Senhoria, as novidades…”

“Ó homem, não me trate por senhoria que me faz lembrar uma senhoria que tive na Rua do Amparo, em tempos que já lá vão, e que tentou fazer de mim o amparo dela… Livra!...”

“Muito bem, Sr. Procurador…”

“Procurador?!... Procurador é bom… Afinal, eu ando sempre à procura de alguma coisa, seja nos livros, seja pela janela, seja debaixo… dos tapetes. Fico procurador. Mas quem é o Sr. Ernesto e que novidades são essas? Ele que diga…”

“O Sr. Ernesto é o feitor da área agrícola, do quintal, das vinhas, do olival, da tapada de caça. E quer falar com o Sr. Procurador…”

Deixei a biblioteca, onde a fuligem das velas e os eflúvios seculares saintes dos cartapácios tornavam o ar um pouco pesado, e fui ao encontro de uma brisa fresca e rescendente a hortelã-pimenta e a loureiro e de um representante daquela velha cepa de homens que tantas mãos deu à história pátria, quer construindo-lhe os navios, quer tripulando-os, quer ficando na sua terra a tirar das pedras o pão que os outros levavam nas naus em forma de biscoito ou criando o porco que esses outros levavam na salgadeira de bordo.

“Sr. Procurador, este é o feitor Ernesto. Ernesto, este é o Sr. Procurador”, apresentou Galhardo.

“Muito gosto, Sr. Ernesto. Então que novidades me traz? Há festa na aldeia?... Um casamento, talvez?...”

“Não senhor, não. Queria mostrar a V. Reverendíssima as novidades...”

“Ai são de mostrar?... Não são de falar?... E não me trate por Reverendíssima, que ideia…”

“Então se o senhor engenheiro me quiser acompanhar, é por aqui…”

“Também não sou engenheiro, deve estar a confundir-me com uns primos meus…”

Passámos a muralha por uma porta dos fundos e descemos a uns terrenos cultivados, por entre árvores diversas. Apontando para diante, disse-me, com um sorriso característico de quem guarda tesouros:

“Então que me diz a isto? Tem em casa alguma coisa que se compare a isto?...”

Olhei em volta, à procura de uma estela coberta de hieróglifos egípcios ou da entrada de uma gruta onde refulgisse o ouro dos Templários, mas a causa de tamanho entusiasmo era a árvore à nossa frente. Era uma árvore. E estava em flor.

“É uma cerejeira. É a nossa primeira árvore em flor este ano. É o anúncio da Primavera. Mas ponha-se deste lado. Veja bem estas flores. Veja bem estas cores. Olhe que mimoso!... Há lá alguma coisa mais bonita!...” 

O homem não estava, de facto, inteiramente falho de razão. Realmente, observada com atenção, daquele ângulo, assim iluminada, havia algo que se lhe dissesse sobre aquela árvore. Não o tinha visto logo porque não estava habituado a encontrar beleza fora dos livros, muito menos assim, no meio de terra solta aos altos e baixos, sem um carreiro de pedra emparelhada, de relva que fosse. Mas aquelas flores, agora que as podia ver uma por uma, eram realmente belas, nas suas subtilezas de brancos e de cor-de-rosa, e a força do conjunto inspirava sensações que conhecia de certos poemas, de certas pinturas, de certas músicas... Ele percebeu que eu tinha compreendido.

“Mas venha por aqui, venha. Olhe para isto!...”

Era um talhão bastante grande, na maior parte plantado com plantas rasteiras de folhas verdes e pequenas flores brancas com centros de amarelo de pólen. Não via muita razão para espanto, mas o meu guia foi-se a uma delas e puxou pela ramagem expôs as raízes, em cujas pontas apareceram uns contrabandos que me pareceram batatas. E eram.

“São batatas do cedo. São as primeiras. Olhos-de-perdiz. Ora veja...”

E, de facto, tinham uns olhinhos cor-de-rosa na pele. Era a variedade, olhos-de-perdiz.

“E ali temos os primeiros tomates, e acolá os rabanetes, as couves-penca, cebolinho, ervilhas, favas e uns quantos morangos. Olhe as alfaces, que luxo! Está tudo a vir bem. Vamos ficar bem prevenidos!...”, disse o homem, satisfeito.

“Muito bem!”, apoiei. “Muito bem! Bravo! E quanto às novidades? O que era?...”

“Novidades? Eram estas... Estas é que são as novidades. As primeiras novidades do ano!... Pode contar também com umas peritas...”   

“Ai isto é que eram as novidades?!... Está boa! Não se pode dizer que estejam mal, não senhor...”

E por ali fiquei a conversar e a aprender com quem sabia fazer experiências que em vez de explosões demolidoras resultavam em ingredientes que nos encheriam as despensas e depois as mesas de géneros reconfortantes.

Quando voltei para dentro de portas achei que o Concerto para Flauta e Harpa de Mozart era a música mais adequada às imagens que me tinham ficado da expedição agrícola. Nessa noite dormi bem.

Correio Premente

De Fortunato de Almeida, lugar da Bugiganga, freguesia de Urrô, concelho de Arouca: “Venho protestar por não ter falado nas suas crónicas em duas vertentes da vida rural que precisam de ser divulgadas, apoiadas e acarinhadas, pela importância que têm nas vidas dos que ainda não se foram embora destas covas e penhascos, os que estão aqui a tomar conta destes sítios onde ninguém pode morar porque nos tiram as maternidades, os tribunais, as repartições de Finanças, as agências bancárias e nos obrigam a pagar portagens e gás de garrafa ao dobro do que se vende em Espanha, quando nós, aqui, de Inverno, temos ventos frios e águas de gelo. Mas nós aqui estamos, a tomar conta e a receber no Verão os finórios das cidades portuguesas e os finórios das cidades estrangeiras, para que se possam divertir, o que fazem vindo para cá com jipes e motos de quatro rodas, dando cabo dos lameiros, dos rios, dos campos, das praias fluviais, como se tudo isto não tivesse dono ou não fizesse diferença a ninguém. Obrigadinho. Vamos continuar a tentar vender-vos umas iscas quando vocês pararem para meter gasóleo ou ir ao quarto de banho. E quem diz iscas diz artesanato. Entretanto, peço-lhe que fale, quando puder, do musgo e das bandas filarmónicas. Para já, é só.”

Com muito gosto. Ainda recentemente passei pela feira medieval de Sever do Vouga, onde verifiquei que uma das tendas era uma iniciativa da Banda Filarmónica Severinense, muito provavelmente para autofinanciamento. Entre os comes e bebes propostos ficaram memórias de excelentes bolos caseiros vendidos à fatia, enquanto, provindo de dentro da tenda, se ouviam maviosos cantos corais. Se a qualidade de execução instrumental da banda estiver ao mesmo nível dos bolos e dos cantos corais, não me importaria nada escutá-la na primeira oportunidade. Quanto ao musgo, é assunto sério que merece mais espaço. 

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