Um passaporte para a liberdade

O Governo português aconselha os seus concidadãos a procurar garantir o máximo de estabilidade legal num país onde nada está garantido. Já não somos portugueses, mas também não somos britânicos. Obriguem-nos a decidir e não hesitaremos na resposta

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Rebecca Naden/Reuters

O seguro morreu de velho e afinal os ingleses não precisam assim tanto de nós. Inglaterra é um barco e Brexit é o seu nome, um barco onde ninguém quer embarcar mas, sob pena de perdermos o emprego, a casa, a família e o futuro, outro remédio não temos senão o da requisição da residência permanente ou temporária em terras de Sua Majestade, para já não falar da nacionalidade britânica para quem já por cá anda há seis anos ou mais: são estas as recomendações do Governo Português para com os seus concidadãos.

Domingo à noite e as férias da Páscoa a acabar enquanto aguardamos pela nossa vez de entrar para o avião da “Tápe” que nos vai levar de volta à anglofonia. A hospedeira de terra, portuguesa de gema, a começar logo pelas ancas generosas, para não dizer obesas, e dedo em riste, verifica os passaportes e os cartões de embarque, um a um. Chegada à nossa vez, passaporte britânico nas mãos e a hospedeira de terra para os dois: “Mas então vocês não querem ter a nacionalidade portuguesa?...”, e nós, pasmos, sem saber o que responder, meio segundo de espera e a hospedeira à espera de uma resposta, ou talvez não, até porque ela é que sabe, ela é a juíza e o carrasco, e no seu mester não é apenas uma pena que não “tenhamos” a nacionalidade portuguesa, é uma traição e uma atitude incompreensível, cobarde talvez, de quem não quer dar o peito às balas (mas damos, todos os dias de madrugada à noite), competindo-lhe por ordem divina julgar e condenar, à boa maneira lusa, porque, afinal “vocês não querem ter a nacionalidade portuguesa”, e a prova está aqui mesmo, na palma da mão e à vista de todos num passaporte com o símbolo daquela banda do cantor maricas que morreu com sida em vez do escudo português na capa.

Resposta, em uníssono, como se tivéssemos alguma vez de responder, como se a senhora hospedeira de terra tivesse alguma coisa a ver com as nossas vidas, trabalho, sacrifício, saudades, pressão, receio e decisões, como se lhe devêssemos explicações, mas não devemos e, no entanto, respondemos e, no entanto, ainda fomos simpáticos e, no entanto, um pouco ingénuos, quiçá por receio, ou então porque assim é esta raiz genética de quem tem de se justificar a cada passo, ora vê lá o que os vizinhos vão dizer, vê lá o que o teu pai vai dizer, o que a tua mãe vai dizer mais o senhor do café e o padre no confessionário ao domingo à tua espera, já te puseste de joelhos, já te humilhaste, confessaste, rezaste e esta sombra que nunca deixa de existir por debaixo do sol que ilumina estas mentalidades, as mesmas mentalidades que nos regem, as mesmas mentalidades que nos expulsam, as mesmas mentalidades que justificam este não regresso e a nossa permanência lá fora, mesmo se contrariados, mesmo se sós, porque enquanto estas mentalidades insistirem em existir não há garantia de um lugar à nossa espera, não porque não nos deixem, mas por já não podermos com tanta ignorância, para não dizer estupidez: “Mas nós temos as duas nacionalidades!”, declaramos ainda acrescentando um sorriso, não sei se por simpatia ou boa educação, talvez os dois, muito provavelmente os dois, porque a boa educação desarma qualquer argumento, e a boa educação desarma a provocação, e se calhar foi isso mesmo, a hospedeira acordara voltada para o lado errado da cama e procurava apenas provocar-nos, e por cada pergunta estúpida uma resposta inteligente e um murro no estômago e, portanto, toma lá esta direita, e depois a esquerda, ao mesmo tempo que a senhora hospedeira de terra nos devolve os passaportes e parte em silêncio para o próximo passageiro na fila.

O Governo português aconselha os seus concidadãos a procurar garantir o máximo de estabilidade legal num país onde hoje e amanhã nada está garantido. Infelizmente, a dita estabilidade tem um preço na incompreensão de quem connosco se cruza no dia-a-dia. A partir desde ponto de não retorno já não somos portugueses, mas também não somos britânicos. Agora, obriguem-nos a decidir e não hesitaremos na resposta.

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