O Porto que eu gosto

Há uns dias fiquei a saber que um dos meus lugares preferidos está a atravessar momentos difíceis. Os seus donos receberam uma carta a comunicar que o seu contrato de arrendamento não será renovado. O proprietário quer arrendar o local a alguém que possa pagar uma renda muito superior

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Paulo Pimenta

Aprendi a "viver" os cafés em 2006, durante o meu Erasmus no Porto. O hábito de levar um livro ou um computador para a cafetaria não era para mim algo normal, mas quando acabou o ano e regressei a Valência, levei-o como um património que agora faz parte da minha maneira de estar no mundo. Em 2014, o meu doutoramento trouxe-me de volta a esta cidade, e não demorei muito a fazer um mapa mental da minha nova geografia através dos espaços de convívio na (para mim desconhecida) freguesia do Bonfim.

Permitam-me que vos explique alguns dos meus pequenos luxos quotidianos, que contribuíram para que, um ano depois de entregar a tese, ainda não tenha ido embora. Quando quero encontrar-me com amigos, vou a um café em São Lázaro. Bom café e encontros mais sossegados, é noutro, na Avenida Camilo. Quando quero ter tempo para mim, e dar-me ao prazer da leitura, escolho um pequeno café perto dos Poveiros. Setenta por cento da minha tese foi escrita (à mão) nestes três sítios tão diferentes, por cujos donos e empregados sinto verdadeira simpatia.

Todos eles sabem de cor o que vou pedir, o que não posso ou não gosto de tomar, ou quem são as pessoas com quem costumo encontrar-me. Ao mesmo tempo, nós, clientes, também ficámos a saber da vida dos nossos co-habitantes de freguesia: sabemos onde passaram as férias, ouvimos as dificuldades com o filho ou o genro, ficámos ansiosos no dia em que encontramos fechado aquele café cuja dona estava grávida. São lugares onde se “faz cidade”. Faz-se cidade enquanto se faz vizinhança, e faz-se vizinhança enquanto se faz cidadania.

Há apenas uns dias fiquei a saber que um dos meus lugares preferidos, o meu café nos Poveiros, está a atravessar momentos difíceis. Os seus donos receberam uma carta a comunicar que o seu contrato de arrendamento não será renovado, porque o proprietário quer arrendar o local a alguém do mesmo ramo que possa pagar uma renda muito superior. Caso tal aconteça, ficar-lhes-ão para trás 23 anos de empenho, durante os quais contribuíram para valorizar uma zona de cujas recentes mais-valias não poderão usufruir.

Não podemos pensar nisto como um caso isolado. A mesma coisa já tem acontecido a vários locais vizinhos e a mesma coisa acontecerá aos locais mais próximos. Note-se que cada local que deixe de ter uma renda justa e entre no circuito da inflação dos preços facilitará o mesmo caminho para os outros. Estas operações não representam, de todo, um interesse por melhorar a cidade (não posso imaginar que o serviço no “meu” café possa vir a ser melhor do que é). É um interesse por ganhar dinheiro à custa de todos nós. Tem um nome técnico. Chama-se gentrificação.

Todos compreendemos que o investimento é necessário para dar vida à cidade, mas é necessário perceber a importância do equilíbrio. Perante o clima de forte antagonismo que hoje vivemos entre, por exemplo, cidade e turismo, parece importante ter em mente que não é necessário ir contra nada nem ninguém. Pelo contrário, todos — comerciantes, moradores, inquilinos, turistas, políticos e investidores — estamos no mesmo barco. Já há câmaras, como a de Barcelona, que estão a combater a “gentrificação” com planos de “vizinhificação”. Também a cidadania pode assumir o protagonismo, e cá em Portugal temos o exemplo do movimento “Morar em Lisboa”.

É, por isso, urgente perguntar que tipo de cidade queremos ter e que tipo de cidadãos queremos ser. É necessário compatibilizar o investimento com a protecção da economia existente, o que abrange tanto as lojas tradicionais como o comércio de proximidade. É essencial entender que, por exemplo, a substituição massiva da economia local por cadeias internacionais prejudica os mais velhos (que, uma vez expulsos do mercado laboral, ficam a depender de subsídios), sem beneficiar claramente os mais novos (normalmente contratados de maneira temporária e/ou mal paga).

Não há melhor marca de cidade do que as pessoas que a caracterizam. Uma vez que já se conseguiu despertar o interesse pelo património, é legítimo procurar que o investimento não deixe ninguém para trás. Por outras palavras, imagem externa e política exterior não são, de todo, estratégias incompatíveis. Note-se que o espaço urbano funciona como qualquer outro ecossistema: quanto mais diversidade, maior funcionalidade. Dentro desta estratégia, a habitação tem um papel fulcral. Recuperar as casas é uma oportunidade para atrair turistas. Fixar as populações é dar razões para que os estrangeiros sintam vontade de regressar.

E vocês, qual é o Porto de que gostam?

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