A ironia das sociedades modernas

De vez em quando, acontece. Já estamos, de certa forma, a ficar habituados, o que diz muito sobre o mundo esquizofrénico em que vivemos

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Passamos os dias distraídos. A rotina absorve-nos de tal maneira que dificilmente temos tempo para uma reflexão alargada seja lá sobre o que for. Chegados a casa, depois de um dia de trabalho, importa ver o que se passou no país e no mundo, apenas para não se perder um episódio desta série onde somos mais uma personagem secundária.

De vez em quando, acontece. Já estamos, de certa forma, a ficar habituados, o que diz muito sobre o mundo esquizofrénico em que vivemos. Hoje, quarta-feira, foi mais um desses dias. Um atentado junto ao parlamento inglês. Um homem conduziu um carro através da multidão, matando e ferindo indiscriminadamente. Depois de embater contra uma vedação, saiu do carro em direção a um polícia, esfaqueando-o sem dó nem piedade. Alguns tiros depois, o atacante estava morto; o polícia atacado não demoraria muito a juntar-se à lista de vítimas.

Os meios de comunicação social transbordam com especialistas em tudo e em nada, para falar do que aconteceu, do que podia ter acontecido, e daquilo que, não sendo possível, talvez venha a ser, ou talvez já tenha sido. De repente, aquela rotina sem espaço para reflexão enche-se de questões mais ou menos pertinentes, e todos discutem o ataque. Porquê?

Este não foi mais um grande atentado, como os de Paris. Não foi um evento coordenado, planeado ao pormenor por uma organização terrorista que tem um objetivo que se sobrepõe à vida dos seus membros. Não há uma cruzada cultural, ou um propósito. Há, sim, uma queda da máscara, tão artificial, que as sociedades modernas trazem vestidas.

Pusemos o homem na Lua. Substituímos órgãos vitais biológicos por órgãos artificiais. Provocamos alterações no clima e somos capazes de alugar uma casa de alguém do outro lado do mundo sem sair do lugar. Vivemos obcecados com os défices, o crescimento económico e a digitalização do mundo. De que vale tudo isto? Aquilo que conseguimos, todos os sucessos da civilização, é posto em cheque com estes eventos. Uma vez mais, um só homem e a sua doença psiquiátrica mostram ao mundo como toda a nossa sociedade é uma construção artificial, que ignora a importância que cada um tem, e o impacto que cada um pode ter, caso assim deseje.

Esta é a ironia das sociedades modernas. Por muito que continuemos a evoluir, nunca seremos capazes de impedir que alguém, calculista ou desesperado, toldado pelas emoções ou pela falta delas, decida desprezar o nosso esforço de jogar a vida de acordo com as regras. Não há crescimento do PIB ou taxa de juro que nos trate, porque o bem-estar não é apenas económico. Não há serviços secretos capazes de deter este tipo de ameaça, porque isso implicaria ameaçar também tudo aquilo a que damos valor. A verdade, nua, crua, cruel, é esta: se queremos liberdade, e se ambicionamos o progresso, não poderemos nunca evitar este tipo de acontecimentos.

Apesar de ser difícil, é preciso aproveitar estes eventos para refletir sobre aquilo que todos, em conjunto, estamos a construir. Honrar as vítimas pode conseguir-se refletindo sobre a fragilidade do ser humano. Nestes momentos de pausa, em que a futilidade da rotina se torna evidente, abracemos a nossa fragilidade: só estando cientes dela poderemos continuar a evoluir, enquanto espécie e enquanto Civilização.

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