Lisboa: estaremos sós com tudo aquilo que amamos

Como podemos celebrar se os nossos responsáveis políticos, ao invés de estabelecerem políticas públicas que promovam o acesso à cidade, têm demonstrado sobretudo inércia? Que interesse é este interesse público que pretendem defender?

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Sebastião Ferreira de Almeida

Novalis afirmou “estamos sós com tudo aquilo que amamos” e é assim que sinto Lisboa mesmo no meio da multidão.

Recentemente ocorreu a celebração de mais uma operação de reabilitação urbana (Cais do Sodré) organizada pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) onde se ouviu Zeca Afonso na voz de B Fachada (já agora, Zeca, se puderes, vem cá abaixo ver isto). A enchente de curiosos e turistas obrigou a um constante jogo de desvios, o rio ficou escondido por entre comboios de transeuntes, as selfies ocuparam as praças e as ruas.

Lisboa é cada vez mais este cenário, uma celebração constante servida como um produto, resumindo-nos simultaneamente a consumidores e figurantes ou, como se diz agora por aí, city-users. Não é, todavia, a perda de autenticidade urbana, o turismo ou a perturbação de uma geografia emocional e física da cidade que me preocupa per si — bem ou mal as cidades sempre evoluíram acompanhando novos contextos sociais, económicos e tecnológicos. Preocupa-me antes o facto de estes serem sinais (ou serem reflexo) da transformação da cidade numa mercadoria à qual só pode ter acesso quem tem poder de compra e preocupa-me ainda mais que o poder político possa especular e inflacionar o valor das cidades no "casino das urbanidades internacionais" demonstrando em sentido inverso pouca preocupação pelos constrangimentos causados nas camadas que sem poder económico se veem espoliadas de pertencer à cidade.

O jogo de espelhos e de inaugurações não consegue ocultar a sensação de a cidade se estar a tornar aceleradamente numa "geografia da injustiça", onde o direito à habitação ou mesmo ao comércio e aos serviços se encontra comprometido, resumindo-se a um dispositivo comercial gerido pelas leis do mercado global e/ou a um dispositivo eleitoralista movido por deslumbramentos de tesouraria.

Um conjunto de instrumentos legais como a alteração a lei do arrendamento (proposta pelo FMI), os vistos Gold ou o "regime fiscal para residentes não habituais", acompanhados por uma falta de interesse na regulação e fiscalização das actividades de turismo de curta duração promoveram a desregulação do mercado de arrendamento bem como a especulação imobiliária, dificultando assim o acesso a um dos direitos básicos consagrados na Constituição portuguesa: ter um tecto.

Eu pergunto como podemos celebrar o gasto em novas obras em Lisboa quando no mais recente concurso de habitação camarária para dez casas disponíveis da CML foram recebidas 3000 candidaturas? Como podemos celebrar quando o programa Reabilita Primeiro Paga Depois tem sido sobretudo aproveitado por privados com capacidade de compra (empresas ou fundos) e o património público, que poderia ser inteligentemente mobilizado para resolver os problemas de acesso à habitação em Lisboa, tem sido alienado? Como podemos celebrar se o valor das rendas e do imobiliário sobe consecutivamente representando taxas de esforço incomportáveis com o rendimento das famílias portuguesas revelando sinais que pode estar por estalar uma bolha imobiliária? Como podemos celebrar se os nossos responsáveis políticos, ao invés de estabelecerem políticas públicas que promovam o acesso à cidade, têm demonstrado sobretudo inércia? Que interesse é este interesse público que pretendem defender?

A origem da palavra cidade, derivada do latim civitas ou cidadania, deveria fazer soar alguns alarmes nos nossos responsáveis políticos num momento em que a democracia se encontra cada vez mais vulnerável perante o crescimento das desigualdades sociais e a expulsão consecutiva de países, regiões, pessoas e negócios do seu espaço operativo e vivencial. A cidade sempre foi alvo de processos de elitização, o que é novo é talvez a escala, a velocidade e intensidade com que esta este processo está a ocorrer. Na ressaca da crise de 2008 que abalou a confiança no sistema bancário e na bolsa de valores, os investidores procuram assegurar os seus activos através de investimentos imobiliários em cidades consideradas seguras.

É por este motivo que o turismo não pode ser o fenómeno exclusivo sobre o qual se analisam os processos de transformação que estão a ocorrer em Lisboa, este é apenas um dos veículos através do qual o processo de financeirização urbana está a ocorrer. Não podemos argumentar sobre o que se passa em Lisboa utilizando dados meramente quantitativos (o argumento lisboa-desabitada) mas sim procurar os impactos profundos ao nível da sociedade que são primeiramente individuais e posteriormente coletivos. As consequências emocionais e económicas sofridas por um casal de idosos que se vê obrigado a sair do bairro em que sempre viveu podem ter pouca relevância estatística, mas têm uma incalculável importância e impacto social.

O turismo e o alojamento local de curta duração não devem ser demonizados porque parcialmente constituem uma fatia de rendimento das famílias, trata-se antes de estabelecer políticas públicas e ajustes legislativos que promovam a igualdade social evitando a formação de guetos de desespero. Não só de Web Summits se constrói uma cidade e outras cidades no mundo já o perceberam. Mais difícil do que estarmos sós com aquilo que necessitamos e gostamos, é sermos obrigados a estarmos longe e impedidos de nos aproximar.

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