Sim, eu também já fumei um charro!

Se sou a favor da legalização do uso recreativo e terapêutico da cannabis? Sou, sim senhor, plenamente de acordo! Se tenho conhecimento de causa dos efeitos da cannabis? Infelizmente tenho, e pudesse eu voltar atrás e nunca teria fumado um charro, quanto mais um cigarro sequer

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Steve Dipaola/Reuters

Quem nunca fumou um charro, que atire a primeira pedra. Eu também já fumei um charro. Bem, na verdade, já fumei vários charros. Mentira, muitos charros! E até vos digo mais: fumei tantos charros a ponto de nem sequer me lembrar de ter fumado tantos charros. E no meu ano de estágio bem que me avisaram para deixar de fumar antes de chegar à escola, na escola e depois de sair da escola.

 

No entanto, se me perguntarem, juro que jurei a pés juntos nunca tal ter acontecido. Afinal, como podia eu, sempre tão certinho, basta olharem para esta minha cara de santinho para não deixarem de colocar um ponto de interrogação, mesmo se nesse ano me vi a viver sozinho pela primeira vez na vida, mesmo se nesse ano, o ano de estágio, o meu avô partiu para nunca mais voltar, ao mesmo tempo que me disfarçava de professor de Ciências para turmas e turmas de meninos da problemática Musgueira, e tudo isto sob a batuta de um orientador de estágio, ex-comando da guerra colonial, cujos 160 centímetros de altura ainda hoje se agigantam quando olho para o lado. 

 

Fumar foi uma fuga para a frente. Só pode ter sido. Uma tentativa infantil de fugir de mim mesmo, para fora de mim e desta vida cuja realidade era obra de uma e única pessoa: eu mesmo. Eu é que me tinha decidido a enveredar pelo ensino, eu é que me tinha decidido a estagiar numa escola de Lisboa, eu é que me tinha decidido a viver por conta própria graças aos 600 euros mensais de um estágio ainda pago (hoje é que já nem por isso, não é?).

 

Não acredito em coincidências

E depois veio o esgotamento nervoso. Não acredito em coincidências, nunca acreditei, e tudo acontece por uma razão. E depois veio o esgotamento nervoso e o ter de aprender outra vez como se colocam os talheres numa mesa, o garfo à esquerda, a faca e a colher à direita, e eu sem sequer perceber para que serve um esgotamento quanto mais o que é uma colher, e tudo durante o Natal, porque se é para ter um esgotamento o melhor é ser durante as férias, porque assim ao menos não é tão óbvio e talvez não chumbe no estágio.

 

Ou então, pura e simplesmente, estoirei ao fim do primeiro período, qual balão em voo picado a blaterar pela sala fora enquanto o ar me foge como sangue, condenando-me a uma morte inglória no chão, a mim, o balão, feito para voar. Lembro-me agora, 17 anos depois, como nesse Natal pensei em desistir do estágio. É curiosa a memória, mulher de sete saias, ciosa de segredos apenas partilhados quando, uma a uma, mergulhamos em cada saia, uma, duas, três...

 

Não desisti do estágio, acabei com média de 16 e nunca mais fumei um charro. O tabaco larguei-o há sete anos, todas as semanas faço 40 quilómetros de bicicleta e uma vez por ano pedalo de Londres a Brighton, e se há seis anos demorei nove horas, este ano preparo-me para chegar ao fim em três horas e meia, e aos 38 faço coisas que muitos com vinte anos não conseguem fazer. 

 

O mesmo não posso dizer de quem me tem acompanhado ao longo desta vida sem deixar de fumar os ditos charros, porque desde problemas de foro mental ao desemprego e a casamentos terminados tenho encontrado de tudo um pouco.

 

Se sou a favor da legalização do uso recreativo e terapêutico da cannabis? Sou, sim senhor, plenamente de acordo! Se tenho conhecimento de causa dos efeitos da cannabis? Infelizmente tenho, e pudesse eu voltar atrás e nunca teria fumado um charro, quanto mais um cigarro sequer. Pudesse eu voltar atrás e porventura tanto eu como amigos próximos teríamos tido vidas bem mais felizes, longe dos sonhos e das ilusões de uma droga que é isso mesmo, uma droga, cuja criminalização nunca fez mais do que fomentar o seu consumo, qual fruto proibido no topo de uma árvore do Éden dos tempos modernos e à qual não resistimos a trepar na afoiteza vadia de uma meninice sempre viva e acesa, como uma chama a dançar nas brasas da fogueira. 

 

Portanto, sejamos claros, mais do que legalizar, é preciso educar, ensinar e explicar, porque se neste mundo tudo está à mão de semear, urge dizer a quem nos rodeia quanto sabemos, vivemos, perdemos e aprendemos, para que outros possam, efectivamente, decidir em consciência, cientes de poderem comer todos os frutos das árvores do jardim do Éden, excepto os da árvore do conhecimento do bem e do mal.

 

E tudo isto partindo do princípio que eu fumei uns charros. Ora, se eu nem sequer me lembro...

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