Um castelo à medida

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Agora que estou a fazer amigos aos milhares entre os utilizadores internéticos, tenho de pensar em arranjar instalações condignas não para os receber, porque detesto multidões (excepto as que estiverem a comprar os meus livros), mas onde encontre melhores condições criadoras, de concentração, de manuseamento ágil dos pesados canhenhos, cartapácios e alfarrábios indispensáveis a manter estas crónicas em nível altíssimo. Nada melhor do que um castelo, que no seu espaço folgado tem também o simbólico (que era a palavra que usávamos até aparecer “icónico” e comer o “simbólico” de cebolada), lendário, mágico, onírico. Nós, que temos castelos medievais autênticos, por que aceitamos a vergonha de só os visitarem estrangeiros? Vamos, vamos nós também para lá, descobrir que história foi feita em cada um deles que é um bocadinho de nós, portugueses. Até temos castelos templários, que são forte chamariz para jovens em geral, mas não vou dizer quais são para não vos desmanchar o prazer da procura. Comecem por Santa Maria da Feira e digam ao guarda-portão que vão da minha parte.

Pela minha parte, sonho ainda com o Castelo de Faria do meu livro de leitura da terceira classe, com uma daquelas ilustrações que não morreram, mas nunca lá fui, talvez com medo de que não ache correspondência, no real, ao da lenda do alcaide Faria (foi ali que aprendi a palavra “alcaide”), à beleza do desenho do livro, aos sonhos de menino. Só agora descobri onde fica: monte da Franqueira, freguesia de Gilmonde, concelho de Barcelos. Um dia destes, vou lá vê-lo.

Sou um dos que foram (atentem nesta construção: “Sou um dos que foram”. Quantas vezes se vê “sou um dos que fui”. E é pena…) até ao alto do Castelo de Marvão. É certo que não é o alto das pirâmides do Egipto, de onde, segundo Napoleão, 40 séculos contemplavam as suas tropas, mas a vista a toda a volta que de Marvão se tem vai até tão longe que há quem veja o destino, o peso da história, amigos que vivem noutros países, um aumento de ordenado. Experimentem.

O que faria eu se tivesse um castelo?

Mais ou menos do que se imaginasse tê-lo?

Seria um sonho ou um pesadelo?

Se é possível comprá-lo, é impossível mantê-lo...

Recorramos à indústria da construção. Como o Estado está pobre embora pareça rico ou está rico embora pareça pobre e depende de maquinismos que não se escangalhem com duas tretas, que não sejam geridas às três pancadas nem nos conduzam ao diabo a quatro, construamos castelos no ar: ainda há terreno disponível, é perfeitamente possível ter aquecimento central e o Imposto Municipal sobre Imóveis continua comportável.

Quanto à escolha de mobiliário e restantes bricabraques decorativos, não poderia ser mais prática: tudo se faz instantaneamente, sem necessidade de uma família italiana (ou do Mediterrâneo ou dos Cárpatos, mais gregários e expansivos do que os nortistas) para alombar até ao parque de estacionamento com os nossos móveis desmontados (idealizados, na galhofa, em estiradores suecos) e, sem gruas, fazer o trabalho de estiva de carregar até à rolha aqueles veículos comerciais que eles têm sempre e nós nunca e, depois, de levar os trambolhos da rua até ao ponto mais alto do monte, que é onde se constroem os castelos (e os no ar, mais altos ainda), e, lá dentro, percorrerem intermináveis corredores e escadarias até à divisão certa.

Passando por cima da incongruência que é decorar um castelo medieval com móveis de aglomerado de madeira em ângulos rectos, já que incongruência é outro nome para vida, que maravilha poder convalescer da síndroma dos apartamentos: esquecer as paredes que se movem de noite, umas contra as outras, para nos achatar as ideias e moer o juízo; podermos espreguiçar-nos sem termos de accionar, acto contínuo, o seguro de substituição de vidros, se o tivermos, ou o rolo de fita adesiva larga, quando não; poder ouvir a abertura da ópera “Guilherme Tell” com o volume do amplificador a meio sem a visita do primo do vizinho do lado esquerdo que, por casualidade, trabalha no Corpo de Intervenção da PSP; poder dormir sem dar por si a meio da noite, estremunhado, com os dedos fincados no gesso do tecto, em reacção instintiva ao estímulo do canto lírico da broca, acompanhado pelo coro de marretas, anunciadores de mais uma redecoração a pedido dos recém-casados do oitavo andar, que acharam os azulejos do quarto de banho principal de tom suspeito, mandaram instalar uma banheira de canto, com repuxos, que inutilizou o bidé, e substituir o chão de tijoleira da sala por madeira flutuante aplicada a toque de martelo, declarando, de caminho, intolerável a existência de uma parede impeditiva da recriação, em tamanho natural, dos grandes bailes da alta sociedade do século XIX (deita abaixo!).

Não me interpretem mal: um prédio de apartamentos é um coração palpitante de vida, é uma oferta múltipla de canais de áudio simultâneos sem telecomando, é uma apresentação teatral de uma companhia vasta e diligente, em sessões contínuas. É uma excelente oportunidade para fazer amigos, quando ocorrem episódios que unem condóminos, inquilinos e oficiais de vários ofícios por um pouco mais de tempo do que concede a agitação dos dias. Por exemplo, ao ficarmos presos em monta-cargas com veteranos que já sabem aproveitar o tempo para jogar à sueca, trocar cartões-de-visita ou endereços electrónicos ou mesmo para ensaiar um ou outro passo de dança. Outra oportunidade régia para estabelecer laços com os vizinhos são as assembleias gerais de condóminos, que, se bem convocadas, substituem, com vantagem, as bestiais touradas e o animalesco pugilismo organizado: em regra, há menos sangue, mas as emoções não deixam de estar ao rubro.

No castelo, o luxo é o espaço. Sem exageros: na cave apenas uma garrafeira, casa-forte, oficina de marcenaria, casamata antiatómica e masmorras. No rés-do-chão, um quarto de banho, uma cozinha com forno de lenha para cozer o insubstituível pão e assar um ou outro cabrito ou javali, se necessário, sala de jantar com mesa para 20 pessoas, não mais, sala de estar, sala de música com piano de cauda, biblioteca-escritório com 100 mil volumes, sala de vídeo, sala de jogos, sala de coleccionismo. No primeiro andar, cinco quartos de dormir com saleta, quartos de vestir e instalações sanitárias agregados e privativos e estúdio de pintura envidraçado. Quintal com pomar e horta, jardim e lago. Muralhas com ameias, barbacã, quatro torres, fosso circundante, com um ou dois crocodilos, e ponte levadiça. Torre de menagem com observatório astronómico. Estufa e garagem de seis lugares, quatro dos quais já ocupados por um Delahaye 165 Figoni & Falaschi de 1938, um Mercedes-Benz SSK “Count Trossi” de 1930, um Mercedes-Benz 540K Special Roadster de 1937 e uma carrinha Citroën C5 2.0 HDi para ir às compras.

Agora é que vai ser trabalhar, meus amigos...

Correio Premente

Nova missiva da nossa leitora assídua Maria Bizantina, da União de Freguesias Merelim (São Pedro) e Frossos, concelho de Braga: “Hoje não me traz aqui o eufónio nem o meu clube promocional do ímpar instrumento, mas o pedido de me deixar falar com a senhora dos porta-seios, pois tenho uma proposta muito concreta para lhe fazer: uma sociedade comercial para abrir um estabelecimento de venda de roupa em geral e interior em particular, mas com um novo conceito: o de todas as peças serem designadas por palavras portuguesas, mesmo que tenhamos de recuar à Idade Média para evitar os francesismos [ou galicismos] do século XIX e os inglesismos [ou anglicismos] da segunda metade do século XX em diante. Se os franceses e os ingleses conseguem, por que não haveremos nós? Abaixo o domínio linguístico imposto pelas multinacionais do têxtil! Abaixo as cadeias terminológicas estrangeiras com que pretendem agrilhoar as mulheres no seu mais íntimo (e todas as ignorâncias domésticas que as apoiarem)! Não deixemos parar este rio de indignação nacional que engrossa a cada dia! Endireitemos esta tortura!”

Bravo! Com todo o gosto lhe enviarei informação para se pôr em contacto com a nossa leitora anónima, caso dela eu receba a indispensável anuência para tal. Como estava eu longe de imaginar que este assunto transbordaria do âmbito da crónica para o do movimento cívico nacional!... Todos os dias me chegam propostas alternativas e criativas à forma dicionarizada “porta-seios”, tais como “suspensório de seios”, “suspensório mamário”, “apoio peitoral”, “maria-do-amparo”, “contrapeso”, “pontinha” (alegoria à ponte pênsil), “contraforte” (para números grandes), “sustentáculo” e “solidário”, para citar só alguns. Com o patrocinador certo, poderia transformar-se isto num concurso. De uma forma muito directa, para ser mais fácil de entender pelos anunciantes: há ‘sponsors’ para um ‘spin-off’?...

De Átila Grande Guerra, das Caldas das Taipas, também repetente: “Já me lembrei do que lhe queria dizer no outro dia, já me lembrei! Não pense que estou a ficar taralhouco! Não senhor: já me lembrei! Mas, infelizmente, não é nada que me possa resolver. Afinal, não era consigo que eu queria falar. Acho que vou ali num instante ao Grémio, ao Grémio Agrícola. De qualquer modo, obrigado.”

Não tem de quê. Disponha. Por momentos, pensei que ia ao Grémio Literário, de que falou o Eça n’“Os Maias”…

De Berenice Amador, freguesia de Pitões das Júnias, concelho de Montalegre, um apelo urgente: “Peço encarecidamente que dê um sinal claro aos seus leitores, amigos e familiares para ignorarem o pedido que fez a nossa junta de freguesia e não enviarem mais livros, pois não temos mais espaço para os acolher. A ideia não era replicar a Torre do Tombo em Trás-os-Montes, apenas constituir uma pequena biblioteca. Bonda! Basta!”

 

Entendido. Cáspite!

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