Cannabis para fins terapêuticos? Bloco leva proposta ao Parlamento

Se a proposta avançar - o PCP concorda e o PS já antes se posicionou a favor - Portugal poderá engrossar já em 2017 o rol de países que recorrem àquela substância no tratamento de cancros, epilepsia e esclerose múltipla

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A lei deverá entrar em vigor em Março Rui Gaudêncio

O Bloco de Esquerda (BE) promete avançar ainda durante este ano com um novo projecto-lei de legalização da cannabis, em duas frentes: para fins recreativos, por um lado, e para fins terapêuticos, por outro. O PCP – que viu chumbado o projecto em que recomendava ao Governo o estudo da utilização da cannabis para fins terapêuticos – também pondera repetir a iniciativa. Antes mesmo de tomar posse, o novo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, deu indicações para que o Conselho Nacional para a Política do Medicamento comece a estudar o potencial efeito terapêutico desta substância.

Em Abril de 2015, as propostas dos dois partidos foram rejeitadas no Parlamento com os votos contra do PSD e CDS/PP. Agora, com a esquerda em maioria na Assembleia da República, é expectável que o desfecho das votações venha a ser positivo. Aliás, na altura, o PS posicionou-se a favor da utilização daquela substância para fins terapêuticos. E mesmo a proposta bloquista que previa a legalização do cultivo daquela substância para consumo pessoal e dava enquadramento legal aos clubes sociais de cannabis granjeou votos favoráveis de dez deputados socialistas, entre os quais Vieira da Silva, Elza Pais, Isabel Moreira da Silva, João Paulo Pedrosa e Gabriela Canavilhas.

“Estamos a trabalhar no projecto, que queremos que tenha esta dupla vertente: de legalização da cannabis para fins medicinais ou terapêuticos, mas também para fins recreativos. São dois fins diferentes, para os quais queremos encontrar as soluções legais e jurídicas adequadas”, adiantou ao PÚBLICO Moisés Ferreira. Para este deputado do BE, já há evidência científica muito sólida sobre os efeitos terapêuticos benéficos da cannabis, quer na sintomatologia quer no tratamento de algumas patologias”. Por isso, justificar-se-á que aquela substância possa ser prescrita por um médico e adquirida nas farmácias “com possível comparticipação do Estado como ocorre com outros medicamentos”.

Para o PCP fins terapêuticos recreativos não se misturam

Quanto à legalização do cultivo e consumo da cannabis para fins recreativos, Moisés Ferreira diz que o BE não tem ainda “o modelo fechado”. “Temos estado muito atentos às experiências mundiais, aliás a proposta dos clubes sociais bebia da experiência na Catalunha [Espanha], mas, entretanto, muitos estados nos Estados Unidos da América já legalizaram para fins recreativos e medicinais e estamos agora a analisar os diferentes modelos”.

Num sentido diferente, o PCP considera que os dois fins não se misturam. “Uma coisa é a avaliação e o estudo da utilização da cannabis para fins terapêuticos e, na nossa perspectiva, isso deve ser analisado do ponto de vista técnico e científico, outra bem diferente é a legalização do consumo de cannabis para fins recreativos”, destrinça a deputada comunista Paula Santos, para concluir: “Uma não deveria ir a reboque da outra”. Porque “há cada vez mais consumidores de cannabis a procurar tratamento nos serviços de saúde na área da toxicodependência”, como sublinha Paula Santos, a recomendação do PCP apontava para o reforço do investimento público na prevenção, ao mesmo tempo que propunha a avaliação das vantagens clínicas da cannabis para fins terapêuticos e a ponderação da sua utilização no Serviço Nacional de Saúde “quando tal demonstre corresponder ao tratamento mais adequado para determinada patologia”. “A questão continua em ponderação da nossa parte, porque consideramos que esse é um caminho que deve prosseguir”, diz Paula Santos.

Curiosamente, o Infarmed - Autoridade Nacional para o Medicamento e Produtos de Saúde garante que a inexistência no mercado português de medicamentos que incluam canabinóides para o alívio da dor se prende “única e exclusivamente com a inexistência de pedidos de comercialização”. Isto porque o Sativex, uma solução para pulverização bucal da GW Pharmaceuticals destinada a doentes com esclerose múltipla, possui autorização de introdução no mercado português, apesar de não se encontrar nas farmácias. Questionado a este propósito, o novo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, admitiu que “provavelmente as farmácias não adquirem este medicamento porque ele não está a ser prescrito pelos médicos, seja por não acreditarem na sua eficácia ou por desconhecimento”. Por outro lado, “se os doentes não o conseguem encontrar nas farmácias, é natural que os médicos não o prescrevam. Provavelmente estaremos perante uma pescadinha de rabo na boca”, admite o bastonário.

Prescrição: 18 países europeus já autorizaram

Ao PÚBLICO, Brendan Hughes, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, confirma que cerca de 18 países europeus já autorizaram a prescrição daquele medicamento, enquanto outros “permitem que os pacientes importem individualmente cannabis dos Países Baixos, onde o seu uso medicinal está previsto desde 2001". “Os enquadramentos legais para a cannabis estão fixados pelo menos nos Países Baixos, Republica Checa, Itália e Croácia, para diferentes indicações médicas, prescritos por médicos de diferentes especialidades”, apontou aquele responsável, para ressalvar que em regra nenhuma das leis vigentes nestes países prevêem que a cannabis seja fumada. “Geralmente é diluída numa bebida ou vaporizada”, especificou.

No mês passado, a Alemanha legalizou o consumo da cannabis como fármaco paliativo em doenças como o cancro, epilepsia e esclerose múltipla, desde que prescrito por médicos. Os pacientes só poderão ser tratados com esta substância em casos muito limitados e excepcionais e não estão autorizados a produzir a sua própria cannabis. A lei deverá entrar em vigor em Março. Em breve serão feitas plantações de cannabis a cargo do Estado alemão. Até lá, a substância será importada.

Mas são cada vez mais os países onde estas substâncias psicoactivas - além da cannabis, o LSD e o MDMA – estão a ser analisadas em laboratórios de ensaios clínicos para testar os seus benefícios num conjunto vasto de doenças: da depressão em doentes oncológicos às enxaquecas, passando pela doença de Crohn, Parkinson, epilepsia e esclerose múltipla, entre outras.

Enquanto isso, o uso clínico da cannabis já é permitido em 28 estados norte-americanos, numa clara demonstração de que o paradigma proibicionista está a perder terreno. À boleia desta mudança, o negócio legal da cannabis está transformado numa indústria multimilionária. O jornal The New York Times estimava, em Janeiro, que o mercado da cannabis recreativa e medicinal rondava os 6,4 mil milhões de euros, num aumento de 34% relativamente a 2015.

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