O Pai Natal

Uns, aqueles que só vêm espinhos e arestas nas coisas, dizem que são mentira. Nós ainda achamos que há ali qualquer coisa de magia

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Bob Ricca/Unsplash

Vejo por aí uma série de artigos sobre se devemos contar, ou não, a história do Pai Natal às crianças. Muitos defendem que não, que isso é estar a mentir deliberadamente, que as crianças vão ficar irremediavelmente traumatizadas e com a confiança no mundo profundamente abalada. E eu penso que a fantasia é uma coisa que deve ter caído em desuso. Que se deve ter tornado em coisa nociva, pois não vá ela ser confundida com mentirolas deliberadas, pontencialmente traumatizantes, das quais temos de proteger as nossas crianças. Proteger com redomas, onde injectamos a verdade em doses controladas, que como boas redomas não têm esquinas, nem arestas. Porque toda a gente sabe que a verdade em bruto pode aleijar a sério. Mas o que toda a gente se esquece é que um mundo sem fantasia é um mundo árido, com chão de gravilha. Do pior para nos esfolarmos quando nos estalemos ao comprido. E não é fantasia que nos faz cair. É uma coisa com mais gravidade: a vida.

A fantasia, essa malandra, agora é meticulosamente escrutinada. Voltada do avesso para ver se lhe encontramos espinhos. Essa mesma fantasia que em criança nos fazia imaginar que voávamos só porque tínhamos uma capa ao pescoço. Ou que nos fazia acreditar que conseguíamos esvaziar o mar inteiro apenas com o balde da praia. E depois havia aqueles adultos que nos perguntavam o que estávamos a fazer. Nós contávamos e (espantoso!) eles riam-se e alinhavam na brincadeira. Não eram adultos a negar-nos a verdade do mundo. Eram adultos que entravam connosco num mundo de fantasia. Boa, acho que o mar já está um bocadinho mais vazio, diziam. Eram adultos destemidos, estes.

Até que um dia descobríamos a verdade. Era chato. Pronto, às vezes era um drama, principalmente se passávamos horas a acartar baldes de água. Mas fez parte, como fez parte a encenação que a minha família criava à volta do Pai Natal. Que, para grande irritação minha, chegava sempre durante uma conveniente ida minha ao cinema. Mas era um momento mágico. Quando descobri que ele não existia fiquei zangada. Chorei baba e ranho. Tal como a minha filha chorou. Ontem estivemos as duas a lembrarmo-nos disso. E descobrimos que somos umas sortudas: temos histórias para contar. Uns, aqueles que só vêm espinhos e arestas nas coisas, dizem que são mentira. Nós ainda achamos que há ali qualquer coisa de magia.

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