O larápio, as velhinhas e os estrangeiros do 28

“ Não sabe ler? É analfabeto? P-R-I-O-R-I-D-A-D-E! Não vê a bengala? Ainda por cima é burro não percebe português... ai, a andar vá, vamos, xô, xô!”

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Ksenya Morozov | Flickr

Tudo começa na fila não indiana na calçada portuguesa que se forma logo pela manhã à espera do amarelinho. “ A espera é o óxido da vida” como diz Zafón, e os olhares impacientes para os relógios denunciam a pressa e anunciam o seu atraso “Já cá devia estar, passou agora um cheio para baixo…” diz uma voz rabugenta na fila enquanto se ouve o som a anunciar a sua chegada. Retomam-se prontamente os lugares de forma a vincar a ordem de chegada, que não haja cá enganos nessa ordem que vai tudo medir cotovelos para a porta do eléctrico.

As velhinhas contam com a bondade do condutor que espera até que elas consigam subir o degrau alto. Curvadas, praguejam a eucaristia da vida, com os seus casacos abotoados até ao queixo, porque está muito frio em Lisboa e, os velhinhos têm sempre mais frio. Mal põem o pezinho no elétrico endireitam a cabeça e assumem logo o controlo do espaço. Desviam o olhar fiscalizador para o banco prioritário e, se este estiverem ocupados, principalmente por alguém com dois metros de altura, louros, pele clara, t-shirt e que fale uma língua estranha leva logo uma rebocada de expressão facial.

-“ Não sabe ler? É analfabeto? P-R-I-O-R-I-D-A-D-E! Não vê a bengala? Ainda por cima é burro não percebe português... ai, a andar vá, vamos, xô, xô!” - Diz ela a barafustar de cenho franzido e bengala esquizofrénica. A soletração e a voz alta aproxima-se do inglês.

Eles levantam-se com um sorriso perdido enquanto dizem “I´m sorry, I don´t understand!”

-“É sórry sórry! Vêm de países onde não há educação, nem civismo, não há velhos no vosso país é? Aqui há leis, percebem, L-E-I-S? Já não há respeito…credo, a minha saúde!” – resmungam elas enquanto regateiam com o cabelo imóvel cheio de laca que nem ele se atreve a mexer um centímetro. Olhos arregalados e sobrancelhas arqueadas delineadas a lápis… Nunca vi tanta genica e bengalas com uma pontaria que é uma categoria.

Entra um solitário com olhos desconfiados no eléctrico, tenta percorrê-lo sem muito sucesso, porque está a abarrotar. Ela faz-me sinal, manda-me uma canelada com a bengala enquanto me sussurra com uma voz alta de quem já não ouve muito bem “É este!”. Acaba a frase com um piscar de olhos cúmplice ao mesmo tempo que me acena com reprovação e narinas levantadas. “É este” diz-me ela… Parecia que estávamos a falar de um crime, tecendo-se sobre nós um ambiente sinistro. Comecei a observá-lo sem incúria, andava ali encostadinho às malas dos estrangeiros… não é que a senhora velhinha tinha razão!? Quando o larápio de olhar sáfaro do 28 se prepara para atacar ouve-se uma voz estridente:

-“Oh, ei! Eu se fosse à senhora punha a malinha pá frente que aqui há muitos gamanços, ah! Está a perceber?”- Fazendo um gesto de malabarista enquanto revira os dedos para tentar explicar através do seu inglês manual. A senhora sorri e não percebe continuando imóvel …. Pois que a velhinha não se deixa ficar e toca de pegar na sua mala e começa a hasteá-la enquanto berra “A mala a mala! Arre…”. Message received. A estrangeira puxou logo a sua mala para a frente. Acho que ficou com mais medo dela do que propriamente da sombra do sujeito que a acompanhava….este último ficou quietinho a olhar lá para fora como se não fosse nada com ele. Larápio profissional!

A viagem continua, elétrico anda aos bochechos no sentido da Estrela, devagarinho e bem compostinho, os carros apitam, o trânsito avoluma-se e a paciência escasseia. Tudo começa a falar em dialectos sonoros enquanto se ouve lá do fundo:

- “Era rebocar já este carro pah, já não sabem que o eléctrico não passa…estes gajos!”- Enquanto ecoa de forma vibrante um “âsse” no fim. Como se fosse um ponto final com vida, para dar mais veemência à sentença. Pudor semântico não existe, são pessoas com muita personalidade as que frequentam o 28!

Os estrangeiros coitados não percebem nada… Estão lá dentro com aquele sorriso cinestésico, riem-se de tudo com um olhar meio tonto pelo fascínio da cidade, passa-lhes tudo ao lado, tiram fotografias, espreitam pelas janelas, é uma felicidade itinerante. Estou quase a chegar a casa, vejo os miúdos agarrados na porta traseira da parte de fora do eléctrico. Como gosto de os admirar, têm o mundo nos olhos, felizes a levar com o vento do balanço na Calçada do Combro. Adrenalina. Adorava ter coragem para fazer o mesmo que eles... Fico sempre receosa dos andaimes e caminhos ínvios perto da Rua Poiais de São Bento, mas eles têm tudo controlado, até parece que encolhem! Gozam com a vida de alto e não têm medo de nada. Mesmo quando os polícias da Assembleia os apanham de soslaio e começam a berrar e a bater com pé enquanto lhes dão ordem para descer os mais rufias mostram-lhe o esmalte reluzente. Que idade tão boa…doce adolescência! O polícia parece o Evaristo, e só falta dizer, “Tens cá disto?” enquanto se vão distanciando na calçada da Estrela, ficando o Evaristo cada vez mais longe... É a gargalhada acima da autoridade que se ouve dentro do eléctrico. Não consigo esconder o sorriso que se despe de infância!

Já vejo a minha casa. Abandono o elétrico como quem se despede de um filme. Olho para o outro lado da rua e vejo que a fila já ganha forma para o sentido inverso. Mudam-se os sentidos mas não se mudam as vontades. Apercebo-me de soluço que ser portuguesa é isto… que tenho um amor visceral pelo meu país, que a sua pele tem rugas de um passado presente, que a sua alma tem saudades do futuro, que a sua luz é fecunda e que a sua beleza é interminável… o 28 guarda o seu travo, sabe a Portugal bem passado!

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