Trump e a velha fasceíte do mundo

Velhos, doentes, fragilizados, minorias, ponham-se a pau, fazei-vos úteis ou serão eliminados, está aí o tempo do "super-homem", a nova, velha, idade de um "espírito santo" coxo e prestes a ser substituído por outra coisa qualquer

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Adrees Latif/Reuters

Não foi só Trump que venceu as eleições. Foi o relativismo, o niilismo, da realidade, que terá vencido as eleições da mundaneidade. Paz à alma da noção de que evoluímos, do conceito de progressão moral, venha lá a velha concepção de "ciclo", de "retorno" do mesmo, a ideia de que voltamos a pisar sempre os mesmos dejectos. Já dizia no meu "O homem-Nada (...)" (2016), que a evolução é o disfarce da reprodução, da procriação, de ideais "ad infinitum". A vitória de Trump é o vencimento do "humano", no seu sentido mais primário, animalístico e previsível.

Não, não existe "nova era", novo tempo de redenção, existe, apenas, o "mais do mesmo", um renovado fascismo, novel totalitarismo, está aí já ao virar da esquina. Novos Hitlers são inteiramente possíveis, democraticamente legisláveis, vencendo, concomitantemente, a noção do "mais forte", da "raça" perfeita, que é apanágio da moral nietzschiana, e que funde perfeitamente o arrogo de certo neoliberalismo (não necessariamente do seu trâmite à Hayek) com o conservadorismo de um "idealismo imperialista" (que é uma espécie de espiritualismo liberal).

Velhos, doentes, fragilizados, minorias, ponham-se a pau, fazei-vos úteis ou serão eliminados, está aí o tempo do "super-homem", a nova, velha, idade de um "espírito santo" coxo e prestes a ser substituído por outra coisa qualquer. E até que isso aconteça, gays, negros e imigrantes não serão bem-vindos, o novo "espírito" não comun-ica tudo o que existe, é, antes, um "feixe" discriminatório, o mundo está sofrendo de fasceíte, inflamação do "fascismo", da fáscia do "eu quero, posso e mando". Não durará esta nova fase eternamente, mas, decerto, fará suas vítimas, e, agora, o que interessa é que nos salvemos o mais depressa possível... Crianças e mulheres primeiro? Não, é o "cada um por si", os mais fortes têm maior probabilidade de levar o bote "salva-vidas" a bom porto, e para chegar a porto com menos desporto é preciso que deitemos fora o intelectual, o maestro, o escritor, o professor, e deixemos ficar o encorpado, que tem mais hipóteses de sobreviver à intempérie. Também há a possibilidade de deixarmos ficar o fraco e deitarmos fora o "forte", que o "fraco" cria muitas vezes ciência, salvando muitos outros; cabe, depois, à dinâmica da fasceíte, tornar essa ciência "diabólica", senão eugénica.

Que interessa que a nova moral possa não salvar "mais" o "humano"? Pode ser até que a coisa corra bem, eliminam-se uns frágeis e reforça-se a "espécie"; quiçá, a longo prazo, tenhamos homens mais robustos, sociedade plena, há que dar a oportunidade à "fasceíte", mesmo que a evidência mais célere mostre que a coisa pode descambar, ah, mas isto é o preconceito da antiga moral, há, agora, que portar a "boa nova", a ditadura da "maioria", o totalitarismo "democrático", as minorias são dispensáveis, mesmo que entre elas possa existir quem salve a humanidade de ser assim tão "principesca".

A vitória de Trump não pertence a Trump. É a vitória da democracia "negra", quem vence é o "amoralismo", prova-se, definitivamente, que tudo se pode repetir, e que o homem não aprende. É a vitória do "moralismo flexível", porque o "mal" que aparentemente detectamos deixará de ser um "mal", não tardará a "normalizar" novel referência, eixo coevo do "novo mundo". E que melhor contexto para isso acontecer do que a terra do "sonho americano", este sonho é o pesadelo de certo "ideal", o paraíso da adaptabilidade. Morre a evolução ética, vence a evolução animalística, e, com ela, vence a vantagem, o ganho, e até a tecnocracia. Filósofos, como eu, poderão ter menos sorte, mesmo que se tornem Heideggers. Assim sendo, largo, desde já, o texto, e vou ali ao ginásio treinar o corpo, o busto, a força, que este mundo não é para fracos.

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