Na Califórnia, o surf é tudo

Não há etnia, faixa etária ou condição física que fique no areal e não se dedique ao surf ou ao "bodyboard"

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Maria Lopes

Na Califórnia, o surf não é apenas um estilo de vida. É pé, braço, chacra; DNA que corre nas marés sanguíneas, batimento cardíaco compassado com as ondulações frias do oceano Pacífico.

Nas horas de preguiça solar que passei no areal da praia de Huntington, observei a movida balnear em volta deste desporto. De manhã ao final da tarde, há um fluxo intenso de pessoas a entrar e a sair do mar. Toda a população californiana tem uma prancha e surfa. Os que vivem nas redondezas, saem de casa com o fato vestido até ao tronco e a prancha debaixo do braço.

Não há etnia, faixa etária ou condição física que fique no areal. Uns metros à minha frente um senhor amputado de uma perna entrou no mar com a prancha de "bodyboard". Voltou mais tarde, acompanhando o descanso na cadeira de rodas com a leitura de um jornal. “Devemos tornar tudo acessível às pessoas com necessidades especiais”, disse Steve Wonder. Esta afirmação dissipa-se no elemento mar: a crista das ondas é acessível a todos, sem conceitos estereotipados ou obstáculos na locomoção. Incrível como é difícil transportar o mesmo conceito de sociedade para o elemento terra.

Dois compinchas que findaram o dia no escritório falam sobre a bolsa e a reunião da tarde, enquanto vestem o fato em esforços contorcionistas e aquecem para o surf.

Do outro lado da rua, há uma loja de havaianas. A dona é Cecília, uma brasileira de sangue luso, os seus pais são do Minho. Há nove anos que chama “casa” à Califórnia e mora em Laguna Beach — palco de séries conhecidas dos tempos áureos de decência televisiva da MTV.

A sua vivacidade e simpatia difundem-se em técnicas agradáveis de "sales marketing", intercalando episódios de vida com mostras dos últimos modelitos — “Essas vão ficar lindas em você!”. De facto, ficaram, umas plataformas num tom dourado castanho que “combinam com a pele morena!” Lá contribui para o empreendedorismo dos irmãos Zukas e para o desfalque da minha conta bancária.

Quando o sol acusa cansaço, as esplanadas e "rooftops" enchem-se de cerveja e burritos. Confesso que os Estados Unidos não são o meu sítio preferido para "cafezar": os americanos gostam de dar largas ao timbre da voz e a conversa que deveria ficar restrita às quatro arestas da mesa torna-se numa palestra, onde todos os aparelhos auditivos à volta ouvem os alicerces da vida alheia.

Ah, já vos disse como é maravilhosamente gélido mergulhar no Pacífico? Não há maior sensação de alma lavada e artérias levadas ao expoente máximo de estalactite. O organismo dá um "freeze". Tudo o que é superfície capilar arrepia, não há pêlo que escape ao choque térmico. “You look like an iceberg”, disse Cora, a inglesa que me acompanhou naquela tarde balnear, quando me viu a sair da água. Olhando para a sua pele em tom lagostim, das horas que passou ao sol sem proteção, diria que mais depressa eu chego aos 60 sem osteoporose do que ela sem cancro de pele. Escusado será dizer que olhou para mim horrorizada quando meti protector solar pela terceira vez. Enfim, escolhas de vida! 

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