Jovem, não tens trabalho? A culpa é tua

Ora, eu também não quero trabalhar. Não quero trabalhar a recibos verdes nem a recibos brancos, não quero trabalhar pelo ordenado mínimo e não quero trabalhar sem contrato, não quero trabalhar sem subsídio de férias, almoço, doença ou paternidade

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Nick Miller/Unsplash

Jovem, não tens trabalho? A culpa é tua. Não por não haver emprego (não há) mas por não quereres trabalhar. Jovem, queres trabalhar? Larga o computador em frente do qual te sentas 365 dias por ano e, por favor, larga o telemóvel e deixa de correr atrás dos pokémons, põe de lado o rendimento mínimo e o subsídio de desemprego à custa dos quais vives e esquece lá essa ideia porque nem todos podemos ser doutores ou engenheiros.

Assim, vai para a lavoura, não tenhas medo de partir as unhas de gel, aprende como se cria um coelho para poderes comer amanhã, ou um frango, pega numa agulha, vai passear cães ou levar as compras à casa de idosos, sai da casa dos teus pais, onde insistes em ficar, vai fazer biscates de Verão, vais ver que aprendes com a vida, nem que seja o facto de te veres a fazer os mesmos biscates quando um dia tiveres 35 anos e outros jovens vierem para te tirar o lugar. E se tiveres um curso, não esperes que um emprego te caia no colo, começa por baixo, a não ser que tenhas uma cunha, e vais ver como, com esforço e dedicação, um dia alcançarás todos os teus sonhos e objectivos, nem que seja lá fora, porque o céu é teu por direito.

Enfim, começando por um IMI cuja taxação depende do Sol (porque é que não podemos todos viver em Inglaterra?), passando pelas bolas de Berlim como o inimigo público número 1 e alvo a abater, eis-nos diante de mais uma não notícia, tão característica da “silly season“ e em torno da qual se gastam agora horas de tempo de antena e litros de tinta nos jornais: um em cada seis jovens portugueses não trabalha nem estuda. Não percebo a surpresa, não quero perceber a indignação e tenho raiva de quem, alarvemente, vem para a opinião pública proferir as ideias supramencionadas como a tábua de salvação para todos os jovens que, como toda a gente sabe, “não querem trabalhar“.

Ora, eu também não quero trabalhar. Não quero trabalhar a recibos verdes nem a recibos brancos, não quero trabalhar pelo ordenado mínimo e não quero trabalhar sem contrato, não quero trabalhar sem subsídio de férias, almoço, doença ou paternidade, não quero fazer biscates nem quero apanhar o “cócózinho do Puchi do chão“. Porquê? Porque, como trabalhador, tenho direito a todos os direitos conquistados à custa do sangue e da vida de tantos antes de mim. Por uma questão de respeito. Porque estudei num país onde os 29% de licenciados continuam longe da média europeia e que, portanto, precisa de empregar os seus licenciados como de pão para a boca se, de facto, almeja desenvolver-se como tal. Porque não tenho de começar “por baixo“, mesmo que uma jovem psicóloga com uma clínica em Picoas no-lo diga na televisão, porque se eu tivesse uma clínica em Picoas também não tinha de emigrar, ao contrário dos 3500 psicólogos que, neste momento, estão sem trabalho, e a falar de barriga cheia também eu.

Se em Portugal um em cada seis jovens “não quer trabalhar“, na Itália encontramos um em cada três, e na vizinha Espanha um em cada cinco, números estes em contraposição com o Norte da Europa, em particular na Alemanha. Ora, ganhasse eu o mesmo que um alemão e também quereria trabalhar. Por uma questão de justiça, por uma questão de mérito, porque estudei para isso.

Portanto, coloquemos os pontos nos “is“: enquanto esta Europa precarizar o trabalho e vilipendiar os direitos adquiridos através de um sem número de governos com as calças na mão, não contem connosco para trabalhar, pelo menos aqui, onde nos últimos anos a sangria levou à saída de mais de 600 mil pessoas, para grande benefício de outras economias e outras vidas que não as nossas. Procurem-nos lá fora, e quando nos encontrarem, pasmem-se, mas não por nos verem a trabalhar, mas sim porque, depois do trabalho, ainda temos tempo para andar à caça de pokémons.

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