Sobre tarot e as suas, perigosas, palermices

Quando a Carla aconselhou a vítima de violência doméstica a “mimar“ quem lhe batia, a ordem não era para despedir a Carla, mas sim para, de uma vez por todas, terminar um programa cujo “modus vivendi“ depende do explorar da ignorância, dos medos e anseios

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“Ó Dona Maria Helena, eu queria saber se o marido da minha filha a anda a trair“, pergunta a voz do outro lado do telefone, já de faca em riste, prestes a desferir o golpe fatal uma vez lançadas as cartas do Tarot naquele programa da SIC onde a outra Taróloga aconselhou a vítima de violência doméstica a “mimar“ o marido. Responde a Dona Maria Helena: “Ele tem os olhos noutra, mas não a traiu. Ela tem de o reconquistar! E com os homens é muito simples“.

E eu, ainda meio a dormir, meio acordado, de súbito a esbugalhar os olhos, então diga lá, que eu por acaso até sou homem e também quero saber, e a Dona Maria Helena, do fundo da sua sapiência, a resumir num só remate todo a essência de se nascer homem: “Os homens conquistam-se pela boca e pela cama! Aprenda, que eu já fiz o mesmo!“

E eu, pasmo, obrigo-me a fechar a boca, escancarada de espanto e horror. Ó Dona Maria Helena, sua malandra! Não, minto, sua loba! Olhando para si, por detrás dos olhos-gregos, da mão de Deus, dos anjos, terços, vasos de sete ervas, cristais e pedras, e onde um cabelo não mora fora do lugar, nunca diria ver em si essa fonte de luxúria e devassa, ao melhor estilo de uma adoradora do lingam. Mas prossigamos, não só por não querer definir o termo “lingam“ (esse fica para o Google), como porque o mais importante é o genro da dita senhora já estar livre da faca, com rédea solta para comer e amar. E por isso, um bem-haja à Taróloga, sem a qual teríamos mais um parágrafo nos noticiários da manhã.

Liga mais uma senhora, emigrada no Luxemburgo, desta feita porque o marido teve um enfarte e a senhora quer saber se é seguro viajar para Portugal, para logo em seguida acrescentar que o médico havia dito não haver contra-indicações nenhumas. Ora, assim ser bruxa também eu! “Não há problema, podem viajar à vontade“, responde-lhe a Dona Maria Helena, “mas conduzam devagar“, ao que a senhora retorque “mas nós vamos de avião...“. E afinal a bruxa não é tão bruxa assim, e ainda para mais antiquada, até porque os anos 60 já lá vão e hoje toda a gente anda de avião. Ah, e se entretanto o homem tiver outro enfarte, já se sabe, a culpa é do médico.

Última chamada, uma senhora cujo actividade profissional decorre numa empresa de panificação, vulgo padeira, à procura de saber se é seguro mudar de emprego. É! “E daqui por três meses vai ver que arranja outro emprego!“, termina a Dona Maria Helena. E eu, indignado como uma rede social, espumo e vocifero num país onde o desemprego de longa duração é a regra e não a excepção, de modo algum em acordo com um canal de televisão e uma Taróloga cujos vaticínios lançam na deriva continental a vida de todos quantos, diariamente, telefonam à procura de uma solução para o desespero do dia-a-dia. E daqui por 12 meses ter a mesma padeira outra vez do lado de lá do telefone a perguntar quando é que volta a ter emprego. Quando a Carla aconselhou a vítima de violência doméstica a “mimar“ quem lhe batia, a ordem não era para despedir a Carla, mas sim para, de uma vez por todas, terminar um programa cujo “modus vivendi“ depende do explorar da ignorância, dos medos e anseios de quem, por falta de família, amor ou companhia, procura todas as manhãs colmatar pela televisão a solidão de todos os dias.

O programa e a Taróloga ainda existem, todos os dias entre as 8:30 e as 10 da manhã. Resta saber até quando. E a que preço.

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