Os cinco infantários e outros sonhos de dois arquitectos na Guiné-Bissau

Portugueses Ana Baptista e Hugo Dourado, do colectivoMEL, "instalaram" o seu atelier ambulante na Guiné-Bissau. Por lá, todos os desafios são diferentes. Mas a função da arte deles mantém-se: “A arquitectura tem o papel social e político de fazer sonhar”

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Partiram apenas pela viagem, mas uma semana depois da chegada a Guiné-Bissau já sabiam que ali iam ficar mais tempo — e com renovada missão. Era preciso desenhar cinco jardins de infância, orfanatos para crianças com deficiência, que soubessem camuflar-se no meio e responder às necessidades locais. Ana Baptista e Hugo Dourado, arquitectos e fundadores do colectivoMEL, aceitaram o desafio. E logo a seguir um outro, o de reformar a sede do Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu em troca de alojamento. “Encantamo-nos com o meio e com as potencialidades desta oportunidade de aprender e adiámos dois meses o nosso regresso. Este foi o início de todo o processo em que estamos neste momento.”

O processo, a decorrer desde Outubro de 2015, prolonga-se até Julho. Os arquitectos — ela de 39 anos, ele de 37 — chamaram-lhe “Atelier Ambulante”, um “exercício de liberdade” que lhes permite “experienciar a arquitectura em diferentes contextos”. Testar. Em África, dizem, a arte deles é necessariamente diferente, porque o meio é outro. Mas, lá como cá, o objectivo é tornar a vida melhor: “A arquitectura tem o papel social e político de fazer sonhar.”

A ideia de deambular pelo mundo em busca de novos saberes e a disseminar aquilo que sabem fazer começou em 2010, durante uma viagem de seis meses pela América do Sul. Em Olinda, no Brasil, perceberam que podiam usar o conhecimento técnico deles em “países onde não há tradição de arquitectura, mas de simples construção”. Nesse município de Pernambuco, converteram uma nave desabitada num atelier para um artista. Em troca de alojamento e durante um mês.

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Sede sul do Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu colectivoMEL

Ana e Hugo criaram o colectivoMEL em Barcelona, há seis anos, cidade onde viviam e trabalhavam desde 2004. Em 2011, já depois da experiência no Brasil, mudaram-se para o Porto e abriram um atelier no número 190 da Rua Dr. Alves da Veiga. Até as viagens para África começarem, em 2014, dedicaram-se a projectos de reabilitação na cidade portuguesa — onde têm actualmente em curso a recuperação de um edifício do século XIX, que será residência, atelier e futura oficina de experiências do colectivo.

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A construção de jardins de infância foi um dos cinco desafios abraçados pelos arquitectos colectivoMEL

Projectos discutidos à sombra de uma árvore

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Projecto para o Parque Urbano de N´Batonha colectivoMEL

Mas voltemos a África. No “feliz acaso” chamado Guiné-Bissau, a dupla portuense tem cinco projectos em andamento, sobretudo no norte e leste do país. Além dos infantários, em parceria com a organização não-governamental FEC – Fé e Cooperação, e da sede sul do Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu (PNTC), em parceria com uma outra associação, a Monte ACE – Desenvolvimento Alentejo Central, estão a trabalhar, com esta última ONG, no Parque Urbano de N’Batonha, nas infraestruturas de ecoturismo do PNTC e num projecto para alojamento de eco-turistas, centro de interpretação e observatório.

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Durante a obra de um ecoturismo na Guiné-Bissau colectivoMEL

Todos os desafios são novos. Num país onde metade da população tem menos de 18 anos, a taxa de natalidade é grande e o acesso à escolaridade ainda muito frágil, sobretudo no caso das meninas, a importância de criar espaços para a infância, por exemplo, é gigante. “A educação para a infância é praticamente iniciada com este projecto”, dizem, sublinhando que o projecto deles teve em conta a possibilidade de replicação do modelo noutros locais. Esse foi o primeiro grande desafio. Mas houve outros: propor uma forma diferente da estabelecida, baseada na observação do local e dessa intenção de adaptação, e ainda enfrentar um “preconceito” em relação à cultura local e à utilização de materiais locais (como adobe e colmo), com muitos benefícios económicos e térmicos. Por último: fazer tudo com um décimo do orçamento que estão habituados a ter.

São todos eles projectos onde os dois arquitectos foram obrigados a sair do “espaço de conforto” e onde puderam “trabalhar directamente com as comunidades”, que na Guiné-Bissau têm “uma grande tradição de participação nas decisões”. Lá, “todas as decisões são tomadas em conjunto”, contaram ao P3: “Cada passo de alguns dos nossos projectos foi discutido inevitavelmente à sombra de uma árvore e em criolo.”

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