A “cultura” do Sr. Summavielle

Elísio Summavielle defende que as touradas fazem parte do património cultural e que este “não se pode abolir por decreto”. A cultura também evolui. Não é uma santinha de altar à qual os conservadores podem rogar em caso de iminência de abalo ao seu "status quo", às suas crenças, aos seus hábitos e vícios

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Bruno Castanheira

Elísio Summavielle, actual presidente do Centro Cultural de Belém, discorreu publicamente acerca da sua perspectiva sobre as touradas. E o seu discurso não foi em nada original. Em nada se destacou da estafada base de sustentação na qual qualquer aficionado se apoia para justificar um gosto pessoal nascido a partir de um hábito, transmitido por via da educação. Elísio Summavielle defende que as touradas fazem parte do património cultural e que este “não se pode abolir por decreto”.

Partamos então do conceito de “cultura”. O primeiro senhor que utilizou e que cunhou este termo tão em voga e, actualmente, utilizado a propósito de tudo, foi o antropólogo britânico, Edward Burnett Tylor. Goste-se dele ou não, definiu-a deste claríssimo modo: “É aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Isto é o significado de cultura segundo o criador do próprio conceito. Ao analisarmos o conceito, rapidamente chegamos à conclusão que nenhum dos componentes do termo (conhecimento, crenças, moral, leis, etc) é estático. Ou seja, cada um deles está sujeito a uma dinâmica perpétua que depende, por exemplo, das circunstâncias sociais, políticas, económicas, do tipo de interacções entre indivíduos, do grau de globalização. Não é estanque. Não é sacrossanto. Não é imutável, pois inerente ao conceito de cultura, é o conceito de mudança cultural que é, em si, o motor da História dos povos, da do nosso e da dos outros. Inerente ao conceito de cultura está o de inovação e o facto de a cultura se perpetuar por via da reprodução dos mesmos usos, costumes, tradições, crenças e conteúdos de sempre, não invalida o facto de ser a inovação que está na base da sua evolução e progresso.

A cultura é plástica, meus senhores. E sendo a cultura plástica, a identidade cultural também o é e todos os padrões e instituições que da cultura emanam. Não é uma santinha de altar à qual os conservadores podem rogar em caso de iminência de abalo ao seu "status quo", às suas crenças, aos seus hábitos e vícios e à sua herança familiar. E, sobretudo, com a evolução da ciência, a cultura também evolui. Elísio Summavielle afirma que “não alinha nesta “sociopatia” pela qual os animais são transformados em pessoas”. Lamentavelmente para o Sr. Summavielle, que gosta de utilizar termos emprestados à psicologia e à antropologia mas que não pauta o seu discurso pelos preceitos do método científico nem honra a precisão dos conceitos que utiliza, a ciência já provou a senciência e a consciência dos não-humanos (documento em pdf) que partilham com os humanos o facto de serem, também eles, animais.

Não é nada de pessoal, Sr. Summavielle. Não são uns sociopatas a soldo de outros sociopatas que querem controlar o mundo. É mesmo ciência. A tal que, a par de todas as infindáveis criações, fabulações, invenções, convenções, imaginações (colectivas e individuais), fruto do intelecto humano fazem avançar o mundo e nos afastam de um passado que, não raras vezes, não é louvável só por ser passado. Assim, sendo o Sr. Summavielle presidente de um Centro Cultural (o de Belém ao que parece), seria aconselhável conhecer a génese dos termos que utiliza e reconhecer que tudo o que aos seres humanos diz respeito — e não só — é dinâmico, mutável e inconstante. A cultura humana não é excepção, e tal como as pinturas do Francis Bacon não são justificação para a imposição de uma estética, também os poemas do Lorca não são desculpa para a legitimação de uma ética.

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