Carta "semiaberta" à Bastonária dos Enfermeiros

O palco clínico cresce a cada segundo, e a especialização é um mal necessário, um bem requerido à pluralidade do(s) paciente(s)

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Ex.ma Senhora Bastonária dos Enfermeiros Ana Rita Cavaco,

Antes que venha dizer que não disse que disse "as pessoas para trabalharem em saúde ou são médicos ou enfermeiros" (sic.), devo afirmar que me sinto ultrajado com tal afirmação. Enquanto fisioterapeuta que sou, sempre fiz por demarcar a minha área, científica e epistemologicamente, e também na arte que ela encarna, e, afinal de contas, fico a saber que não sou terapeuta, mas que, enquanto profissional de saúde que me concebo, devo ser "ou médico ou enfermeiro". Bem que havia uns tantos pacientes que me chamavam "sr. enfermeiro", mas já me chamaram tantas coisas — "massagista", "terapista", "professor de ginástica" — e nunca pensei ser qualquer uma delas, "mea culpa".

A bem ver, não seremos todos "profissionais de saúde"? Os homens que recolhem o lixo ou que lavam as escadas não são profissionais de saúde? Os contabilistas que me livram de enormes dores de cabeça não são profissionais de saúde? A minha namorada que me isenta de umas tantas DSTs não é uma profissional de saúde? Os que me aturam, fazendo-me poupar no psiquiatra, não são profissionais de saúde? Somos todos profissionais de saúde, porque ajudamo-nos todos uns aos outros, e, à semelhança da sra. Bastonária, somos também todos padecedores do ego, não há, por exemplo, quem não tenha um bocadinho de complexo de "super-homem", a teomania existe desde sempre.

Mas, convenha-se, nisso o enfermeiro é "mais profissional" que os outros todos. Têm sido tantas as tentativas do enfermeiro tomar a rédea às diferentes áreas da Saúde, como se já não bastasse andar tudo à pancada neste terreno que, por acaso, até é dedicado ao paciente: o psicomotricista bate no terapeuta ocupacional e vice-versa, estes afunilam-se no território da terapia da fala, e esta anda à estalada à audiologia, o terapeuta ocupacional e o fisioterapeuta nunca se deram muito bem, o segundo nem pode ver o professor de educação física e vice-versa, e estes, por sua vez, batem no psicomotricista (e todos escarram no fisiatra que escarra neles todos), que, entretanto, já levou do psicólogo, o qual também já terá levado do psiquiatra, não tarda acabam mesmo todos no psiquiatra, como sempre acontece em Saúde, até que não haja "psi" que aguente, mas não nos alertemos, pois o enfermeiro "super-homem" possui uma solução, passam todos os terrenos a ser da sua alçada, assim escusam os enfermeiros de bater na totalidade dos profissionais, inclusive nos médicos, os quais, como sabemos, entregam identicamente essa totalidade à palmatória.

Também sonho com esse V Império da Saúde lusófona: o profissional messiânico tornado Unidade, qual D. Sebastião cuidando, milagreiro, do estado de espírito da nação que padece. Mas, convenha-se, até que chegue o dia em que seremos todos UM (incluindo o que ao corpo diz respeito), talvez devêssemos repartir as tarefas. O palco clínico cresce a cada segundo, e a especialização é um mal necessário, um bem requerido à pluralidade do(s) paciente(s).

Sim, é verdade que nos arriscamos a dividir o paciente às postas, mas essa é a obrigação cognitiva que concorre para uma visão mais justa e fidedigna do nosso paciente; e, aqui que ninguém nos ouve, com tanta bosta que se faz em "Saúde", até é mais seguro dividir a responsabilidade, são mais cabeças a pensar, e deveriam, por isso mesmo, ser todos a "mandar", a opinar (a verdadeira "terapia" — e avaliação — é "um caminho que se faz caminhando".

O raciocínio clínico comanda o curso da situação, a "terapêutica" deve ser decidida nos termos de um "contrato social" transdisciplinar, podendo até ser nomeado um profissional "líder" cujas formação, carácter e experiência potenciem a "melhor" solução para o paciente em causa), uma equipa cujo árbitro é o próprio paciente (sua necessidade ou objectivo, o tempo para consumi-la, alcançá-lo).

O acordo, o encontro inter-subjectivo, permite aproximarmo-nos da verdade (tirando, claro, todos aqueles casos em que cada um dá de si sua sentença, mas, mesmo aqui, a existência de vários profissionais amplia a possibilidade de algum deles ter razão), a desordem é um risco, mas em desordem já nós estamos, pois, acreditem que, em saúde, o que é perfeitamente bem feito é raro, é o peso do sistema, e para ele deveriam todos contribuir (com diferentes pesos, diferentes medidas?), ganha o paciente se ganham os profissionais.

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