A miúda do 701

Eu que gosto de seriedade desnecessária como de levar porrada, arrepio à receita de sempre, a patetice!

Foto
André Branco/Unsplash

Notamo-la logo que entra no autocarro, num daqueles carrinhos de três rodas, empurrada pela mãe, talvez 5 ou 6 anos (é difícil adivinhar no caso dela), empurrada pela mãe molhada da chuva da tarde, com a irmã mais pequena a pé e pela mão. Empurram-se para o espaço em frente à porta de trás todas as três, criam entre nós o vão estritamente necessário e estacionam.

Eu vou nos primeiros assentos depois do degrau da parte de trás, portanto de camarote para o cacho familiar; o autocarro é o 701 (Campo de Ourique ao Campo Grande, a passar pelo Hospital de Santa Maria) e um olhar para ela chega para adivinharmos exactamente em que paragem vão descer, os pobres e doentes saem todos no mesmo sítio.

É demasiado grande para andar de carrinho, demasiado grande para a chupeta que lhe tapa parte da cara mas demasiado pequena para a tez amarelada, para as fundas olheiras, para a magreza ossuda dos pulsos entre o casaco e as luvas, demasiado demasiado demasiado pequena para o cansaço e tristeza daqueles olhos desossados, negros, a contaminar-nos de silenciosa angústia, de sossegado desespero.

Tem algo do terrível óleo do Metsu que vi no Rijksmuseum, a criança doente da peste de 1663 em Amsterdão. A mesma postura alongada de Pietà, o mesmo desalento caído de braços e pernas, a mesma desistência da vida, a mesma mãe dobrada sobre si própria, os mesmos olhos sombrios, só dor... só que mais magra, mais amarela se possível.

O desatento burburinho de autocarro lisboeta em fim de tarde desaparece num sopro. Sem ser nada connosco instala-se a solenidade grave dos momentos maus e impossíveis. A empatia tortura-nos, a impotência sufoca-nos. Respiramos todos cuidadosamente em tom de câmara ardente enquanto tentamos não nos perguntar o que terá a garota, o que lhe andarão a fazer as boas almas de bata branca de Santa Maria. As velhotas lançam olhares camaradas à mãe, um ou outro encanecido sorri à irmã caçula e evidentemente saudável, toda a gente se faz prestável, oferecem-se lugares sentados e mais espaço e ajuda para virar o carrinho, todos evitamos os insuportáveis olhos por detrás da chucha, por todos passa a realização do discreto heroísmo dos médicos e enfermeiros pediátricos, viver nisto todo o dia, todos os dias!

Tanto viram e rearrumam o carrinho que ficamos de frente um para o outro, “o senhor me deu, o senhor me tirou, bendito seja o nome do senhor” dizia o tio Job. Olhamo-nos a sério, barbudo grisalho e de barrete para a chuva eu tenho bastante a ver, ela também evidentemente, forço-me a olhar para além do medo, olho-a de frente, aguento, seguro-a.

Isto não lhe acontece demasiado, e por trás da tristeza e do cansaço espreita a curiosidade de todo o puto de seis anos. Olha-me firme, com um “o qu’é que foi pá?!” muito urbano, muito lisboeta. Eu que gosto de seriedade desnecessária como de levar porrada, arrepio à receita de sempre, a patetice!

Com o mesmo ar seráfico de todos os outros, olhos nos olhos, começo discreto a mexer as orelhas e a fazer os óculos subir e descer o nariz. Um segundo de perplexidade e depois o reconhecimento que está a lidar com um palerma, chamada de atenção à irmã que se lhe junta, temos espectáculo.

Eu lá vou lento (para fazer render) desfiando o meu reportório de momices para putos: entorto os olhos para os lados e para dentro, faço os óculos descer até à ponta do nariz sem lhes tocar, puxo o lóbulo da orelha virando os olhos para esse lado ao mesmo tempo como um boneco animado, entorto a boca torcendo as narinas, deito a língua de fora para, com um piparote no queixo, a engolir novamente. Sempre com o mesmo ar sério de maduro a caminho do trabalho (o truque está no ar sério).

A caçula ri-se descarada, a mãe sorri-me um sorriso cansado, ela, ela quase que se ri por detrás da chupeta. Remato com uma piscadela de olho enquanto a malta ajuda a mãe a descer o carrinho do 701, ela devolve-ma; eu sigo convencido que temos alguma coisa a fazer mesmo (especialmente) quando não há nada a fazer.

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