Morrerei dignamente, seja como for

Antecipar a morte não é um crime contra a natureza, mas sim um auxílio ao destino a que a natureza nos reserva

Foto
DR

Falar sobre a morte causa desconforto aos dialogantes e aos ouvintes. Não é um assunto banal nem trivial — consta, possivelmente, da lista dos assuntos mais omissos da nossa história. Visto pelas visões mais supersticiosas, é encarado como um chamativo, como uma forma de antecipar a vinda mais indesejada. E se formos mais a fundo, podemos encontrar o assunto tabu dentro deste assunto igualmente tabu: a morte medicamente assistida.

A discussão pode tornar-se longa se nos debatermos sobre aquilo que é ético ou moralmente digno. E neste assunto entra, inevitavelmente, a religião e todos os seus fundamentos — seja ela católica, judaica, muçulmana ou qualquer outra. Isto porque um dos fundamentos base de qualquer religião é atribuir o poder de ordenar sobre a nossa vida a um deus e só a ele cabe a responsabilidade de decidir o destino de cada um. Ora se esse nosso deus nos atribuiu uma doença oncológica e nos condenou a semanas infindáveis de sofrimento, é nosso dever aceitar esse fado para que assim se ganhe o reino dos céus. Não estou a dizer nada de novo, todos sabemos que esta é a pregação base da religião católica e neste nosso país profundamente enraizado no catolicismo, quebrar a barreira do medo à crença ainda é uma luta contemporânea, uma luta primária, muito antes da luta por um qualquer direito fundamental.

Mas nos últimos dias temos ouvido falar sobre o tema em questão e a despenalização e regulamentação da morte assistida pode ser em breve uma realidade em Portugal. Antes de qualquer crença ou fundamento moral, há algo que deve ser tido em conta quando tocamos num assunto que diz respeito aos direitos fundamentais do cidadão, consagrados na constituição da república portuguesa: a liberdade individual e a respetiva escolha do não sofrimento. O que tem isto de difícil de entender e aceitar? Voltamos a esbarrar na religião. E até esbarramos com alguns dos fundamentalistas ligados à ciência exata que veem na interrupção do sofrimento um crime contra a natureza e tudo o que ela criou. Felizmente os nossos conceitos de crime são plurais e uma grande parte entende o crime de uma outra forma. Um crime não se entende como uma escolha em benefício do bem-estar, muito pelo contrário. Retirar a vida a alguém que se encontra em plena harmonia com a sua vida é um crime contra a natureza. Por outro lado, assistir alguém a colocar um término ao purgatório que o sofrimento lhe causa é um auxílio ao destino a que a natureza nos reserva.

À família reserva-se o dever de respeitar a vontade de quem sofre. À família deve reservar-se o direito de decidir sobre a vida de alguém sem capacidade de responder por si. E a essa família deve ser pedida consciência e, acima de tudo, coragem para colocar o bem-estar dos seus em primeiro, muito antes de qualquer outro interesse, muito antes daquele nosso egoísmo natural de quem não quer ver o outro partir.

O que felizmente me tranquiliza é saber que na assembleia atual primam maioritariamente os valores da liberdade e igualdade, já provados há semanas aquando da despenalização da IVG e da aprovação da adoção por casais do mesmo sexo. E as leis da igreja, travestidas de normas para a plenitude após a morte, não entram em discussão. É assim que a democracia deve ser exercida: feita por homens e mulheres cuja maior convicção é o respeito pela liberdade individual de todos os cidadãos, feita pela harmonia entre a vida e a morte — sem tabus, sem mais sofrimento. Este é o verdadeiro ciclo da vida: a nossa escolha.

Sugerir correcção
Comentar