A adopção gay: uma visão para-moral

Nesta sociedade paternalista, a homossexualidade é encarada enquanto "anormal" e a adopção gay não é geralmente aceite

Foto
Anna Sastre/Unsplash

Debater um tema aparentemente tão exaurido quanto o da "adopção gay" parece inútil, não fosse o mesmo remeter para uma divisão profunda, bipolar, que fractura a Ética e explica, em parte, a celeuma existente entre "conservadores" e "libertários". É bem certo que discutir a adopção gay não trata de falar apenas no "bem-estar" da criança, é a própria homossexualidade que é discutida, bem como aquilo que ela significa e implica.

O dogma que cria a renitência relativamente à adopção homo-parental é o mesmo que demoniza, patologiza, a homossexualidade: ele é "psicanalítico", não é partilhado por toda a ciência "psicológica" (ou mesmo por parte da psicanálise contemporânea), e prolonga um tipo de moral paternalista, que coloca o fulcro ético na imagem do homem/pai e "diaboliza" o feminino, assim como o que este representa. Sabemos que a psicanálise contrapôs a grande parte da repressão devida e criada pela moral conservadora, muito associada ao ideal platónico-cristão, mas também é vero que o mesmo método cimentou a visão do equilíbrio bi-parental centrado particularmente na representação masculina enquanto gerador de saúde mental e da plena diferenciação do filho.

Se, acaso, a representação feminina possuísse maior pendor, poderia soçobrar a identificação do filho com o pai (ou da filha com uma mãe hipoteticamente dominante e intrusiva), em substituição pela possível fixação edipiana, gorando-se, assim, a saúde mental em primor da fobia maior do cânone psicanalítico: o incesto (simbólico). O dogma da bi-parentalidade, do equilíbrio dual, é, correntemente, sobretudo um dogma psicanalítico, e, por meio do que ele implica em termos das relações familiares, pôde a psicanálise contribuir para se cristalizarem representações de "normal" vs. "patológico" que foram facilmente entrosadas por uma sociedade já dominantemente machista e heterossexual. Nesta sociedade paternalista, de resto imperante desde há milénios, a homossexualidade é encarada enquanto "anormal" e a adopção gay não é geralmente aceite.

Para a primeira, a consecução de casamentos homossexuais e da adopção homoparental podem constituir fonte geradora de mais homossexualidade, porque é o próprio equilíbrio familiar (e com ele as "normais" representações de género), bem como o seu quadrante de Valores, que é abalado, transformado, intimamente. Uma situação "anormal" produz seres "anormais", se não "traumatizados", porque gerados numa família "anormal" num contexto diferencial maioritariamente "normal". (Note-se que, numa perspectiva psicanalítica, vai tudo depender também do sexo e idade da criança e do sexo dos pais. Será, por exemplo, mais gravoso um rapaz possuir duas mães ao invés de dois pais? E se o rapaz for adoptado quando já possuir boa parte da identidade sexual firmada?

Como se firmaria e ultrapassaria o "complexo de Édipo" com duas mães, ou dois pais?...) E se o "normal" fosse a união homossexual? E se o contexto maioritário figurasse homoerótico? Para alguns seria a normal evolução perante a crescente efeminização da sociedade, sobretudo porque engrandeceria a representação feminina das famílias, aumentando a probabilidade de se "criarem" filhos homossexuais. Mas, agora, a pergunta fulcral: se tal constituísse a situação maioritária, a "normalidade", faria sentido falar em trauma, em patologia?

Não é a doença mental, em grande medida, criação de um contexto, projecção da sublimação de uma "média" instituída? Não é a própria noção de "género" mera construção - condicionamento - social? Contudo, é fácil perceber que uma mudança de paradigma, que, de qualquer modo, já está a ocorrer (com a moral "mater-ialista" a criar cada vez mais raízes), pode gerar sofrimento nuns tantos, referindo-me aqui sobretudo aos conservadores que se encontram confortavelmente radicados em sua moral "pater".

Agora, nova questão: o "bem-estar" das crianças institucionalizadas, e tantas vezes sujeitas a abusos, a depleção do seu sofrimento, não poderá compensar um certo desconforto dos afectos à antiga moral? E dirão os conservadores que, correndo o risco de "homossexualizar" a Sociedade, colocamos, assim, os pretéritos "normais" (os heterossexuais) em vias de se verem "patologizados", "traumatizados" e em sofrimento. Ora, não só tal coisa está longe de se demonstrar, como - deixem-me ser extremista - mesmo acontecendo, seria o direito natural da mudança social, da transformação dos paradigmas. Em última análise, quem pode saber qual o paradigma "normal", a moral "correcta"?

Enquanto relativista radical que sou acredito que todas as morais possuem igual direito (não deixando, assim de acusar certa "moralidade"... igualitária) a existir. Não existem verdadeiramente Valores universais, existe - sim - transformação, e esta deve ocorrer porque todos possuem o direito de ser simultaneamente "normais" e "patológicos", "adaptados" e "inadaptados". 

Sugerir correcção
Comentar