Fazer diferente

Arriscar no tempero. Cuspir fogo caso tenha sido demais. Rir disso. Convidá-la para sair. Dar-lhe boleia. Pôr a mão na perna enquanto o táxi parou no vermelho. Não ter medo. Não dar como certo. Fazer diferente.

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Para muitos é capaz de ser das coisas mais assustadoras que há: a rotina. Para outros, não lhes diz nada visto que já vivem nela. O dia tem um tempo que anda para a frente e nunca pára. Feito de momentos, interacções, relações e proximidade. É capaz de ser das coisas mais belas e misteriosas do tempo. Cruzarmo-nos com alguém por segundos. Alguém que poderá nunca mais voltar a passar por nós até ao fim dos nossos dias. Como poderá haver alguém que se cruze mais do que uma vez. Ou mais misterioso ainda: passarmos pela mesma pessoa em dias diferentes sem darmos conta.

Seria bom podermos viver o dia duas vezes. Um de uma forma banal, rotineira, acertando o passo com o relógio. Outro, com os mesmos desafios mas levados de forma diferente, com um olhar diferente e com uma atenção especial. Apanharíamos a beleza das coisas. Como não é possível, porque não vivê-los apenas da segunda forma? Desligar o despertador do telemóvel e largá-lo logo de seguida deixando o "scroll" para depois. Tomar café na pastelaria do lado. Quem está ao balcão vê gente nova e nós também. Ir ao quiosque, levar o jornal de sempre mas antes da passagem das moedas, um aperto de mão. Parece difícil e constrangedor mas pode ser fácil e compensador. Ele ganhava o dia e nós uma visão diferente.

Descer as escadas para o metro sem pressa, observando quem desce connosco. Aquele engravatado que acordou com os pés fora da cama. Aquela mulher carregada de livros. Os outros dois jovens de "phones". Chegar perto para saber o que ouvem. Chegar ao escritório e a primeira sala a bater ser a do director para um simples “bom dia”. Tramado hã? Não, aqui não há graxas. É fazer diferente. Sair a tempo de um pôr-do-sol e da mercearia aberta. Agradecer a fruta e dizer à conhecida senhora de 70 anos que tem a vida pela frente. É fazer diferente. É deixar o iPhone no bolso para desfrutar realmente do momento daquele grupo que estava a tocar em plena rua. A partilha fica connosco. Se tivermos que contar, que seja por palavras. Os outros formarão imagens. Imagens diferentes. Cozinhar com o vinho a respirar e deixar a água descansar por uma noite. Arriscar no tempero. Cuspir fogo caso tenha sido demais. Rir disso. Convidá-la para sair. Dar-lhe boleia. Pôr a mão na perna enquanto o táxi parou no vermelho. Não ter medo. Não dar como certo. Fazer diferente.

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