Quem sabe o mínimo sobre o Médio Oriente

Somos a “Civilização do Espectáculo” e exilámos a cultura para bem longe. O entretenimento é uma doença má que nos impede de pensar. Perdido o espírito crítico, o próprio conhecimento é vazio de sentido. Quem me aponta o Iémen no mapa? E porque ninguém fala da sua ocupação a sul pela Al-Qaeda desde 2000?

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Suhaib Salem/Reuters

Todos queremos espetar uma bandeira na cara. Eu até espetei duas. Tenho a França na bochecha direita e o Líbano na esquerda. Todos queremos ter uma opinião. Eu tenho a minha, mas não é imutável. Ter uma opinião fundamentada não é fácil. Requer esforço, capacidade de memória e permeabilidade à mudança.

Nas redes sociais entre compaixão e medo, a maioria escolhe o seu lado como hipótese única. Se a cultura do medo é facilmente reprovável por cair em xenofobias baratas, o que dizer da cultura da pena? Que compaixão é esta fabricada ao sabor das histórias favorecidas pelos média? Que verdade é esta? O que sabe a maioria sobre o Médio Oriente? Lembra-me a maioria pró-israelita e pró-palestina que vai flutuando ao sabor da moda. Quem se lembra de Arafat? Já a rainha da Jordânia nas capas da Hola...

Somos a “Civilização do Espectáculo” e exilámos a cultura para bem longe. O entretenimento é uma doença má que nos impede de pensar. Perdido o espírito crítico, o próprio conhecimento é vazio de sentido. Quem me aponta o Iémen no mapa? E porque ninguém fala da sua ocupação a sul pela Al-Qaeda desde 2000? Dos seus atentados sangrentos a hospitais civis este ano? Nenhum apareceu no telejornal. Temos apenas especialistas na Síria, agora? Como tivemos antes do Iraque. Sempre um olho aberto e o outro tapado. E quem nos deu o direito de esquecer Sanaa, Património Cultural da Humanidade, palco de guerra pessoal da Arábia Saudita e do Irão? Arábia Saudita, um grande cliente da França no que toca a armamento, já agora. Quem condecorou Tawakkol Karman, primeira mulher árabe Nobel da Paz, uma propagandista da Irmandade Muçulmana? Só o terrorismo lucra da instabilidade no Médio Oriente. Tão podre está o mundo que um Nobel da Paz é fantoche político. Obama é só mais um.

E quem fala sobre o recrutamento de mártires na Somália, a troco de comida ou simplesmente a garantia da própria vida? Nem a Amnistia Internacional. Quantos de nós morreria por honra para não se alistar numa milícia? Um punhado de líricos, se tanto.

Onde funcionou mesmo a Primavera Árabe? No país dos telejornais, talvez. Tunísia, o aluno único exemplar: nota máxima com dois candidatos da oposição assassinados. Esquecemo-nos que a democracia pressupõe a existência de pluralismo. E o pluralismo nasce do livre acesso à educação, conhecimento e cultura. Devíamos avaliar o estado de desenvolvimento de um país pela sua expressão artística. Como pensa quem cria e se pode sequer pensar quem cria, diz muito de um país.

Quem se lembra da nobre Damasco. Quem foge até nós hoje, foge para sobreviver não em vida, mas em humanidade. Não é isto digno para a Europa? Só agora a guerra na Síria nos vem bater à porta a pedir asilo. Obrigada Primavera Árabe. Desde 2011 que a comunidade internacional assobia para o lado perante um ditador, o seu exército, a oposição rebelde, o ISIS e todos os países que já escolheram a sua equipa. A Síria é agora uma guerra com muitas outras guerras lá dentro. Os curdos agora até são fixes e tudo, não é Obama? Antes fosse que a dita comunidade internacional interessada tivesse assobiado para o lado com o Saddam Hussein, o Kadafi. O Iraque melhorou para o ISIS que lá autoproclamou o seu califado. E para a Líbia alguém quer ir de férias, além do ISIS? O imperialismo ocidental e a sua convicção arrogante que a Democracia é uma máquina de fazer sociedades desenvolvidas. Que se engane quem pensa que uma ditadura não é mesmo o que alguns países ainda precisam para se desenvolver.

Cuidemos antes do nosso socialismo doente e acalmemos este liberalismo sem precedentes. Quem consome o petróleo da Arábia Saudita e Irão? E o gás natural da Rússia? Quem absorve as meias verdades diárias que nos contam em resumos superficiais para imbecis? Quem repete as opiniões de especialistas baratos? E quem os sabe ouvir? Quem nunca leu o Corão, mas tem uma opinião negativa? Mas é um fundamentalista com os acrónimos ISIS vs Daesh?

Como centrámos a nossa perspectiva de interesse numa unanimidade tão medíocre? Onde estão os grandes pensadores dos nossos tempos? Onde está o espírito crítico? E quantos de nós desistiu de pensar, investigar, ler ou questionar? O conhecimento não está na primeira página de um motor de busca, nem a verdade num ecrã de televisão. A internet afunila qualquer assunto até à sua banalidade.

Sim, empatia e compaixão são bonitos sentimentos indispensáveis à nossa Humanidade colectiva e individual, mas sem fundamento e conhecimento de causa, tornam-se apenas em fenómenos virais. Modas como vídeos de gatinhos a tocar piano, mais uns dias e outro gato toma o seu lugar. Somos consumidores de tragédias, quando podíamos ser eficazes opositores anónimos. A maioria somos todos nós. E a nossa bandeira podia ser mundial.

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