Pobreza: o que separa Armando e Clara pode ser um passo em falso

No projecto da Cais "Caho – Capacitar Hoje", jovens voluntários e mentores ajudam utentes a reintegrarem-se no mercado de trabalho. Um em cada cinco portugueses são pobres — e o problema pode afectar todos. Neste sábado, 17 de Outubro, assinala-se o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza

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Paulo Pimenta

No exíguo prédio da Associação Cais, no Porto, a pobreza é um substantivo colectivo. Um problema de “muitas faces” que não acaba nem termina nos pobres — e ao qual ninguém se declara imune. Clara Martins é voluntária no "Caho - Capacitar Hoje", projecto de capacitação e empregabilidade desta associação de solidariedade social. E conhece bem o carácter traiçoeiro da linha que a separa de Armando Leite, desempregado em busca de uma “vida que ficou para trás” de quem ela se tornou mentora na Primavera deste ano. Se não contasse com a ajuda financeira da mãe, Clara, 30 anos, “podia bem estar do outro lado”. E isso é, para ela, o cerne da questão, disse ao P3 nas vésperas do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza: “Há muitas camadas dentro deste problema, mas o que sei é que ele não acaba nem começa em pessoas como o Armando.”

Pessoas como o Armando são rostos de uma realidade crescente na Europa e em Portugal. Em 2013, os níveis de pobreza e exclusão registados no país foram semelhantes aos de há dez anos. Um em cada cinco portugueses — dois milhões de pessoas — são pobres. Os números revelados pelo Instituto Nacional de Estatística no início deste ano são o dia-a-dia da Cais. Pela sede portuense da associação com mais de duas décadas de trabalho, há muito se incorporou uma estratégia de combate focada numa palavra: capacitar. Dar ferramentas de combate a quem as perdeu, esqueceu ou nunca as teve. Procurar o que de melhor existe em cada utente. E ter a reintegração no mercado de trabalho como destino final.

Clara e Armando encontraram-se no projecto "Caho – Capacitar Hoje". Ela, fisioterapeuta de formação, despertou definitivamente para o mundo social em Londres, numa estranha passagem de ano vivida em conversa com um sem-abrigo, e tornou-se voluntária para ajudar na mudança. Ele, desempregado de 45 anos a quem as portas se fecharam, procurou no mesmo projecto um novo alento e uma libertação dos apoios sociais dos quais depende. Nesta semana, entregaram na associação uma proposta de reactivação de um serviço de lavagem de automóveis, “micro-negócio” que a Cais chegou a ter no Porto e que foi entretanto encerrado por inviabilidade financeira. Se correr bem, Armando poderá voltar a ter um emprego.

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Nuno Vasconcelos diz sentir-se mais confiante com o apoio de José Sinde Paulo Pimenta

A iniciativa partiu dele. Depois de um período inicial de trabalho com a mentora, Armando tinha decidido afastar-se. “Estava a passar por um mau momento.” Mas as propostas "constantes e inúteis" do centro de emprego para que fizesse mais formações acabaram por despertar uma ideia. Ocorreu-lhe que tinha concluído, na Cais, uma formação em lavagem de automóveis e que “a saída podia estar aí”. Quando Clara recebeu o telefonema dele, percebeu imediatamente a “conquista gigante” que Armando tinha feito. “Ter a iniciativa de querer reactivar o projecto é valor teórico criado. Mesmo que depois não dê certo, alguma coisa ficou feita.”

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Clara Martins ajudou Armando Leite a preparar uma proposta de reactivação de um micro-negócio da Cais Paulo Pimenta

Trabalhar características como a auto-estima, sentido crítico ou espírito de iniciativa, ainda que subtilmente, está na lista de tarefas dos mentores. Quando aceitam embarcar no projecto — e doar duas horas semanais à associação —, recebem uma formação inicial de 16 horas e indicações de metas a serem cumpridas: devem, por exemplo, ensinar os utentes a fazer um currículo e um portefólio ou treiná-los para entrevistas de emprego. “Descobri que tinha competências que não valorizava ou estavam adormecidas”, analisa Armando: “Como criar um Power Point, por exemplo. Ou como estar mais à vontade e lutar pela minha vida. Acho que ainda sou jovem e tenho algo para dar à sociedade.”

Nuno Vasconcelos, utente da Cais há cerca de um ano, percebeu a diferença quando foi chamado para uma entrevista de emprego numa cadeia de supermercados. “Senti-me muito mais confiante e expressei-me melhor. Acho que enalteci as minhas capacidades, como o senhor José me tinha ensinado”, recorda. O "senhor José" é José Sinde, 24 anos, mentor da primeira leva de formações da associação para o projecto Caho. Tinha acabado o curso de Psicologia há pouco tempo, estava desempregado e ficar parado não era uma opção. Com a noção de “serviço à comunidade” há muito criada pela experiência de ser escuteiro, foi bater à porta do edifício na Rua Mártires da Liberdade. Para ele, o importante não é discutir ajudas estatais mas antes trabalhar no sentido de as tornar desnecessárias: “Há pessoas que gostam de se centrar na questão dos apoios, se o RSI está a mais ou a menos, eu prefiro centrar-me na questão fundamental. A da inserção.”

Do estar bem ao não ter nada

É uma escalada que parece infinita a Nuno Vasconcelos, apanhado pela pobreza numa curva inesperada. Natural de Lamego, mudou-se para o Porto aos 18 anos, quando as grandes cidades eram ainda um mundo de oportunidades. Foi empregado de armazém, vendedor, repositor, servente de obras, distribuidor de bebidas. Saltava facilmente de emprego em emprego sempre que algo melhor aparecia. Um dia, já em plena crise, o trabalho que tinha na área da restauração abanou e Nuno caiu. “Tenho 36 anos e nunca me tinha acontecido nada assim. Mandaram-me de férias sem me pagarem nada. Fui completamente abaixo.”

As poupanças que tinha rapidamente desapareceram. Ficou com o subsídio de desemprego, que entretanto terminou. Depois apresentou “um atestado de pobreza” e deram-lhe o subsídio social de desemprego — mas também esse está em vias de acabar. Vive agora num T1 com preço de amigo, alimenta-se em instituições e nas carrinhas que param pelo Porto, pondera sair da cidade para conseguir um emprego. Ou do país, se tudo der errado.

Nuno foi parar à Cais “por causa dos iogurtes”, única oferta de alimentação que a sede do Porto fornece. Mas o que o fez ficar foi outra coisa: “Aqui consegui recuperar algum ânimo. E aprendi quais são os meus pontos fortes. Acho que no futuro terei outra capacidade”, sorri em jeito de esperança. Esta aptidão de identificar e potenciar o melhor de cada pessoa é o que mais atrai Clara para a área social. “O que é que eles têm e não estão a usar, o que eles não estão a ver, o que eu não estou a ver.” O Caho “não promete emprego”, sublinha Filipa Mora, coordenadora dos voluntários, mas assume a responsabilidade de “aprofundar competências” com um objectivo último de reintegrar os utentes no mercado de trabalho — e três dos 24 que passaram pelo projecto no Porto já cortaram essa meta.

Enquanto a caminhada se faz, os utentes podem encontrar um meio de valorização e sustentabilidade financeira num dos “micro-negócios” da Cais. No Porto, estão em funcionamento o Cais Recicla, projecto de ecodesign, e a Revista da associação. Enquanto que em Lisboa há também um serviço de lavagem de automóveis (que Armando procura agora reactivar a norte) e um serviço tarefeiro denominado Buy@Work. “Tínhamos estes ingredientes disponíveis na associação e decidimos aproveitá-los também neste projecto do Caho”, resume Cláudia Fernandes, coordenadora da Cais no Porto. O financiamento de dois anos dado pela EEA Grants, com gestão nacional da Fundação Caloute Gulbenkian, vai terminar em Dezembro. Mas pela Cais já se trabalha para que o projecto não tombe e a associação espera vir a contar com fundos do Instituto de Emprego e Formação Profissional.

Voluntários entre os 20 e os 35 anos

Este trabalho feito por voluntários e associações como a Cais é frequentemente uma navegação em contra-corrente. Sem ajuda e empenho da sociedade em geral e do tecido empresarial em particular, o que eles fazem “não chega”, critica Filipa Mora: “A responsabilidade social é muito gira, mas é usada em termos de 'marketing'.” Na prática, há ainda uma longa viagem pela frente e muita sensibilização a ser feita: “Chegam-nos ofertas que não são minimamente apelativas. As pessoas fazem contas e perdem dinheiro se trabalharem, mesmo comparando com o valor de 178 euros que conseguem com o RSI. Desta forma o ciclo não é cortado.”

Um sinal de mudança sentido pela associação no Porto tem sido o interesse crescente de pessoas de várias áreas em fazer voluntariado. No último ano, chegaram sobretudo jovens — entre os 20 e os 35 anos, no que ao projecto Caho diz respeito — “com muita vontade de fazer alguma coisa pelo outro”, congratula-se Cláudia Fernandes, acrescentando que todos têm algo para oferecer e são bem-vindos. “É um voluntariado muito altruísta e não egoísta como já aconteceu noutros tempos.”

Diferente atitude adopta ainda a maioria das pessoas fora das quatro paredes da associação, lamenta Armando sob sinais de concordância de Nuno. “Vivi um ano na rua. Alimentava-me dos caixotes do lixo. E ninguém me estendeu a mão nessa altura. Ninguém. Foi uma lição de vida que me fez dar valor a muita gente”, diz pausadamente. Para Armando, a sociedade continua a olhar para pessoas como ele apenas “como aquelas que vivem às custas do Estado e dos contribuintes”. E, em alguns casos, isso é uma “grande injustiça”: “Há pessoas que precisam mesmo. Pessoas como eu que querem trabalhar e não conseguem.” À volta da mesa de uma sala no terceiro piso da Cais, o lamento de Armando instala um breve silêncio entre o grupo. Voluntários, trabalhadores, utentes — por ali, sabe-se bem que “a crise não está só de um lado, é de todos os que vivem neste país.”

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