Refugiados: Lisa está cá para receber quem vem de lá

Portugal tem uma “tradição muito recente no acolhimento a refugiados”, mas isso não impede que sejam bem recebidos. Lisa Matos, 36 anos, é especialista em receber pessoas que precisam de ajuda para recomeçar. É preciso “um jogo de cintura” para ouvir e perceber o que os refugiados dizem. Ou escondem

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Lisa acredita que a chegada de refugiados a Portugal nos vai obrigada a ouvir, em vez de julgarmos Patrícia Martins

Nos últimos 12 anos, nos Estados Unidos, Lisa Matos trabalhou com sobreviventes de tortura e ouviu contar “o que de mais vil se pode fazer a um ser-humano”. Foi sendo exposta a histórias inacreditáveis, ganhou defesas próprias de quem sabe que, no dia seguinte, é provável que ouça relatos ainda piores. É por isso que esta portuguesa fica “um bocadinho indiferente aos números” que, diariamente, vão sendo notícia. “A enormidade dos números não nos pode paralisar”, sublinha, em entrevista ao P3. Pensa caso a caso, naquilo que é concreto, na dimensão com a qual pode trabalhar, agora no Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS). O regresso a Portugal fez-se em Abril de 2014 e, desde então, Lisa tem vindo a coordenar a assistência técnica a um programa de reinstalação de populações da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR). Não é exagero se dissermos que a sua especialidade é, de facto, idealizar e implementar programas para acolher estas pessoas.

Dos milhares de refugiados que, nos últimos meses, têm chegado à Europa via Hungria, Grécia ou Itália, Portugal deve acolher 4574 — isto durante os próximos dois anos. Os primeiros 30 podem vir durante o mês de Outubro. Mas o SJR ainda está à espera de ver chegar os 45 refugiados, actualmente no Egipto, referentes à quota de 2014. Estas pessoas continuam a viver em incerteza. “Foram perseguidas e estão em fuga, têm um historial de trauma e de perseguição muito grande e sério mesmo antes de chegarem ao país de acolhimento”, descreve Lisa. O compasso de espera que se verifica permite, contudo, preparar outras coisas, “olhar para boas práticas internacionais”. “Portugal tem uma tradição muito recente no acolhimento a refugiados”, reflecte, é preciso aprender a fazê-lo de forma responsável.

A flexibilidade é, para Lisa, o ponto de partida para quem trabalha com populações refugiadas. As suas características são diferentes e dependem do país de origem, da cultura, da religião, do género, do tipo de perseguição. Apesar disso, têm um perfil comum: “São muito resilientes e sobreviventes, estão habituados a não mostrar vulnerabilidades, têm sempre que andar para a frente.” Mostrar-lhes que precisam de cuidados médicos é um dos desafios. Têm sequelas físicas e psicológicas “muito graves” devido a trauma prolongado. Sofreram antes, durante e depois da fuga. Técnicos, médicos e psicólogos necessitam de “um jogo de cintura para perceber e ir além do que a pessoa diz”.

Ser “testemunha da história”

Nascida em Coimbra há 36 anos, Lisa quer trazer para Portugal muito do que aprendeu na Healthright International e na Human Rights Clinic. O “serviço especializado” que estas organizações prestam nos Estados Unidos no âmbito da identificação de populações vítimas de tortura pode ser transposto para a realidade portuguesa, ainda que a uma escala bastante menor. O trabalho no terreno, junto dos indivíduos e das famílias vulneráveis, é o que mais apaixona Lisa (e uma das razões para se ter inscrito num doutoramento em Psicologia Clínica no ISPA). “Gosto imenso de trabalhar com estas pessoas (…), sentimos que fazemos um bocadinho a diferença todos os dias.”

Lisa mantém o contacto com as organizações norte-americanas e em Agosto de 2014 foi chamada ao Texas para “ajudar a montar um estudo”, em colaboração com a New York University. O objectivo era destrinçar a percentagem de migrantes que atravessa a fronteira Sul dos EUA por motivos económicos daqueles que são refugiados. Mesmo ao fim de tantos anos a lidar com pessoas perseguidas, houve um caso que a marcou: o de um senhor com mais de 70 anos que se viu obrigado a deixar o país de origem, na América Central, porque o filho de 15 anos tinha começado a ser assediado pelos gangues. “Aquilo ficou comigo porque um processo de migração forçada já na terceira idade é uma decisão de muito desespero”, confessa. Nas populações refugiadas, diz, a média de idades “anda à volta dos 30 anos”.

Parte do seu trabalho é, precisamente, “ser testemunha da história”. Ouvir os relatos de quem teve de tomar a difícil decisão de deixar tudo para trás e encaminhá-los para um recomeço. “Temos pessoas cá que nos dizem que ainda têm familiares no país de origem e que vão tentar a travessia do Mediterrâneo”, conta. “E não há nada que eu possa dizer porque eles sabem os riscos. Nós ouvimos e guardamos.” As imagens que nos entram em casa através dos jornais, da televisão e da Internet são a realidade dos dias de profissionais como Lisa.

“É bom que isto [as imagens] venha a público, que as pessoas tenham um bocadinho de noção do que se passa”, acredita. Uma das consequências positivas da mediatização é a mobilização da sociedade civil portuguesa. “É bom que não fiquemos indiferentes, essa é uma população que fará parte da fibra da nossa sociedade”, continua. Lisa ressalva que a diversidade, de que tanto gosta, não tem que “nos fazer perder a identidade”. “Vai-nos obrigar a ouvir, em vez de julgarmos e partirmos de certos pressupostos.” Tolerância, no fundo. Está convencida de que estamos preparados, “até certo ponto”, mas também curiosa “para ver como é que depois vai ser a prática do pós-chegada”. “A generosidade que se tem visto vai ter que se manifestar em termos concretos”, defende. No supermercado, no bairro, na escola. A quem responde a estes apelos com críticas, Lisa pede que “não atrapalhe”. “Desde que não dificultem a vida a pessoas que já estão em situação vulnerável, tento não prestar muita atenção.”

A reinstalação ou relocalização de refugiados que o SJR facilita — junto com a PAR e o Estado português — não inclui apenas encontrar um local que os receba. Os técnicos acompanham as famílias e prestam “serviços de orientação cultural e geral”, desde explicar como é que se apanha o metro à inscrição das crianças na escola. Há uma obrigação de “fazer o acolhimento e juntar as duas comunidades, a receptora e a imigrante, para desmistificar as ideias pré-concebidas”. “Esta é uma população imigrante, refugiada ou não.” E, nos próximos anos, a tendência é de crescimento: segundo estimativas da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), 1,4 milhões de refugiados vão chegar à Europa entre 2015 e 2016.

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