Hungria: moralismo ou muralismo europeu?

A Hungria está a gastar 21 milhões de euros em 175 quilómetros de comprimento — sem um único centímetro de compaixão

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Bernadett Szabo/Reuters

Caríssimo Sr. Órban,

Este não é, certamente, um texto que se coadune com a sua fação política. Mas também não sei se se coadunará com qualquer outra. Creio que quaisquer ideologias serão irrelevantes perante o valor da vida humana, o valor que isolará com um muro. Serão 175 quilómetros de comprimento — sem um único centímetro de compaixão. Serão quatro metros de altura, com dez de profundidade — o insuficiente para lhe alcançar o âmago. Serão 21 milhões de euros investidos — sem que um cêntimo seja empregue em ajuda humanitária. O muro que construirá será o monómio de uma equação cujo resultado não dá lugar a quaisquer incógnitas. Isola-nos da identidade europeia genuína e dos valores primordiais que lhe estão inerentes: o acolhimento e o respeito; a solidariedade e a humanidade.

Rejeitar a identidade europeia e os pilares em que esta se edificou, durante dezenas de séculos, é esvaziar o conceito de Europa. Não podemos esquecer as raízes. Porque, quando nos perguntarem “que Europa somos?”, a nossa resposta não se pode enclausurar nos limites espaciais que a geografia nos delimita. A Europa transcende as fronteiras do tempo e do espaço e encontramos a sua marca indelével nos quatro cantos do mundo. A Europa é expressão viva de civilização, de tolerância e de integração.

O projeto europeu de Monnet, de Schuman e de muitos outros é a sua maior evidência: o desejo de unificar a Europa, fundado em alicerces fundamentais — a liberdade, a igualdade, a democracia. Daqui, nasceu a futura UE, um espaço de união entre culturas e ideologias necessariamente diferentes. E para ela nascia, volvidos 47 anos, a Hungria.

O alargamento de 2004, Sr. Órban, constitui, talvez, o maior desafio e, simultaneamente, a maior oportunidade para todos. O alargamento de 2004, Sr. Órban, traduz-se em verbo de paz, unificação, estabilidade, prosperidade e progresso, sobretudo a Leste — onde a sua conjugação escasseava. Enquanto membro desta união de povos, é este mesmo verbo que se comprometeu a conjugar.

Exemplo de humanidade e de paz

Pertencer à UE é, também, ser e partilhar um exemplo de humanidade e de paz. Por isso, e permita-me que cite Jean Monnet, “a Europa far-se-á por realizações concretas, desenvolvendo antes de mais uma solidariedade de facto”. E a solidariedade, de facto, Sr. Órban, não se fará por muros. Tal como a Europa. A Europa far-se-á de pontes — de diálogo e de diretrizes de pensamento, ampliando o nosso modo de perspetivar o mundo.

Porque há, de igual modo, outras perspetivas deste drama que, no respeito pela matriz de valores europeus, nos sugerem outras soluções. Repare bem: com 21 milhões, mutila a dignidade humana e obtura a esperança dos que procuram uma vida melhor, construindo um muro; com 21 milhões, poderia investir em condições de acolhimento, possibilitando-lhes uma vida digna. Mas poderia, também, investir na promoção da paz, segurança e liberdade, nos países de origem, contribuindo para minorar este drama, com impactos diretos na vida daqueles que a procuram.

É da guerra e dos conflitos que fogem e é fundamental ir à raiz dos problemas — somente dirigindo a nossa ação para as suas causas, dirimindo-as, se resolvem estes dramas. Porém, não se pode agir sozinho. E a Europa tem uma hipótese de agir. A identidade constrói-se (e destrói-se) com atos.

A terminar, não lhe peço, Sr. Órban, que apenas reflita sobre estas palavras. Deixo-lhe, também, um lembrete. Em 2015, vivemos o Ano Europeu para o Desenvolvimento. Ao abrigo desta iniciativa, o mês de agosto é dedicado à ajuda humanitária. Não se esqueça. Porque a Europa não se fará de muros. Far-se-á de pontes.

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