Impressões de meio de Maio

A minha mulher revira os olhos ao basqueiro dos benfiquistas, a garota começa a apanhar o potencial cómico do palavrão e mete “cócó” em todas as conversas que tem

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Tobias Schwarz/Reuters

Faz quente, faz frio, faz quente outra vez, põe-se um vento do demo, vai-se guito no IMI, temos discussões pedagógicas, a gata vomita tudo porque comeu os baraços dos cortinados outra vez, o João e eu seguimos atentos as mãos do primo Rufino enquanto ele enxerta uma nova perna à cómoda velha da avó e nos explica como a cola branca às vezes é uma solução melhor que pregos ou parafusos.

O artesanato cá do bairro raspa o vício no balcão da papelaria enquanto eu espero para o tabaco, a minha mulher revira os olhos ao basqueiro dos benfiquistas, a garota começa a apanhar o potencial cómico do palavrão e mete “cócó” em todas as conversas que tem. Apalpo as cebolas do Ferreira, escolho-as pequenas porque madame agora meteu na cabeça que não posso guardar metades no frigorífico que nos dá a moléstia não sei do quê, todos os meses arranja uma nova... a sorte dela é ser gira.

Traduzo o francês chulo dos bonecos do “Charlie” ao meu pai enquanto esperamos que a cria acabe a natação, o resto da burguesia salta e sua a ver se fica esguia e agradável à vista para a época balnear, há qualquer coisa de horroroso nos ginásios, mesmo se excluirmos o cheiro. Afago a minha própria pança impenitente, o “bidón” como diz a miúda, dizem todos que estou gordo que nem uma lontra, calúnias... é só barriga, mas ou me mexo ou compro roupa nova, venha o diabo e escolha.

Morre-se-nos o B.B. mas por cá só o Rui Veloso é que nota, entretidos que estamos com as miúdas que esmurraram o puto, o adolescente que matou o outro por causa dum par de ténis, mais o subcomissário que molhou a sopa porque o dia lhe estava a correr mal... ui ai que admiração, que choque, que espanto. A sonsaria do costume mostra-se indignada, o tio Manuel Luís preocupa-se, o Quintino, o Hélder das facadas e 20 ou 30 judites reformados e pedo-psicólogos e juristas e um enfermeiro forense também. Se o horror secasse amanhã o que havia de ser da gente; o meu avô tranca portas e janelas e pudera, com a polícia a bater em brancos desta maneira!

Na Irlanda a realidade não consegue corrigir os “um dos países mais conservadores e dominados pela Igreja” dos jornalistas portugueses, em Espanha nem tanto ao mar nem tanto à terra, em casa esbulho o arroz de pimentos e a criança anda a comer arroz encarnado e insonso (com um pico de azedo) durante dois dias, o gato lixa a rede da janela logo na noite em que é posta, aprendo com a minha irmã a cozer camarão (conhecimento inútil que eu não o como), leio o Ortigão (o velho reaça escreve que é um doce), vejo se a criança tem febre encostando os lábios à testa, borrifo-a com spray anti-piolhos que o meu primo farmacêutico diz que os gajos estão aí em força.

Meto um disco do B.B. (leia-se escolho-o no computador, eu sou um bocado antigo) e gelo no copo, garanto-me que a criança dorme, espremo meio limão e misturo com a ponta do dedo, revejo as cartas que tenho para responder (sim, os meus amigos também são um bocado antigos) e as respostas envelopadas mas ainda sem selo, tenho de ir aos correios. Quando era puto na papelaria não só se vendiam selos como nos diziam quanto custava um fosse para Brooklyn fosse para Aberdeen, agora tenho de ir aos correios e a senhora do balcão vai-me tentar impingir um livro da Margarida Rebelo Pinto ou um disco dos D.A.M.A. e eu vou ter de lhe dizer que comigo é mais música e escritores que leram mais livros do que aqueles que escreveram, o que é chato e mete-nojo mas não deixa de ser verdade.

A gata dos meus irmãos trilha-me um dedo e eu não me queixo porque fui eu que me fui meter com a fera: a cada qual seu vício e os meus sempre foram fêmeas com mau-feitio, a puxa e um copito (um fuminho se houver) e mexer nas criaturas no sentido contrário ao pelo.

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