Um Salazar em cada esquina

Eles andam mesmo aí, mas temos de ter cuidado com os pseudo-factos que nos atiram aos olhos

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Que as pessoas andam cansadas de políticos já não é novidade para ninguém. Mas a indignação deu lugar ao marasmo, aparece um político corrupto e a gente encolhe os ombros, como quem diz, é só mais um. As notícias, essas, já fartinhas de escândalos e escandaleiras, impressionam-se quando um político faz bem o seu trabalho. Recentemente, foi a Bloomberg a espantar-se com Mariana Mortágua, mas tem havido, de tempos a tempos, outros casos. De qualquer modo, é impreterível notar que a indignação de alguns tem seguido um caminho enviesado e mal informado. Esta não é uma tendência nova, mas talvez o destino me tenha posto no caminho de muito revolucionário de café que apregoa a necessidade de um Salazar em cada esquina. É como diz o adágio urbano: eles andam aí.

Eles andam mesmo aí, mas temos de ter cuidado com os pseudo-factos que nos atiram aos olhos. Dizem que antigamente é que era bom, não havia poucas vergonhas na rua, não havia gente desonesta, tudo tinha um propósito comum e andava aí tudo na ordem. Isto, minha gente, tem um nome: propaganda. E da falsa. Não sou eu que o digo, são os livros de História. Ainda me lembro do dia em que um simpático velhinho me contou como, nos tempos de juventude, ajudava as gaiatas a perder a virgindade sem que os pais dessem conta e, se fosse preciso, ajudava outras senhoras de bem a cometer adultério. O velhinho em causa podia ser um grande ficcionista, mas, não sei porquê, ainda hoje acredito nele. Mais ou menos na mesma senda, não deixa de ser engraçado ler o enxoval de bom senso que Fernanda Câncio ofereceu a João César das Neves.

No novíssimo “António Ferro: O Inventor do Salazarismo”, Orlando Raimundo explana a forma como Ferro criou uma mitologia para Portugal, entre as quais a falsa tradição do Galo de Barcelos e das Marchas Populares, o modo como o jornalista Ferro traiu todos os seus camaradas ao instituir a censura e o afamado lápis azul, as artimanhas onomásticas para chamar ao Benfica de clube “encarnado” e não “vermelho”, não se fosse dar o caso de o conotar com a extrema esquerda, e até de como se reabilitou o fado para promover o povo em favor do regime.

Leia-se: “nos primeiros anos da ditadura, as elites culturais que a apoiavam olhavam o fado de soslaio, com desprezo. Fado era há muito sinónimo de miséria, bebedeira e zaragata. (…) De início, o Estado Novo declara guerra ao fado. (…) A atitude do regime só muda em relação ao fado já na ponta final da Segunda Guerra Mundial e por acção de António Ferro, que aposta em manipulá-lo até onde possa e alinhá-lo o mais possível com a propaganda. Em resultado dessa operação, o fado passa dos ambientes populares e marginais aos salões da burguesia e às adegas típicas que vivem do turismo. Amália Rodrigues, em quem António Ferro admira a extraordinária voz, é a alegre cobaia da experiência”. Tanto jogo de cintura para encapotar as vilanias que, ao mesmo tempo, se praticavam. E, ainda hoje, há quem tenha saudades desses tempos.

Os portugueses, de uma maneira geral, ligam pouco à História que os precede, mas o mito do sebastianismo está de tal maneira inculcado que os poderíamos dividir ao estilo judeus vs. cristãos: uns acham que o Messias está por vir, outros crêem que já chegou – e por isso celebram-no, carregados de saudades. Saudades infundadas, está visto. Novos e velhos, trago uma mensagem importante para todos vós: o caminho é para a frente, o espelho retrovisor só serve de cautela em caso de imprevisto e para nos sabermos localizar melhor que nunca. É, de certo modo, triste que o cidadão comum não se indigne com comportamentos daqueles que o governam. Mas o que é verdadeiramente preocupante é que sejam os revolucionários inconscientes e tresloucados a ter uma opinião assertiva sobre o mundo que os rodeia.

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