A crise acabou

A crise acaba quando as pessoas voltarem a ter sonhos nos olhos. Até lá, agradece-se uma ponta de decência

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Rafael Marchante/Reuters

Agora a cantilena mediática começa a ser outra, diferente da que temos ouvido ao longo dos últimos quatro ou cinco anos. Dantes, a culpa era toda da crise. O desemprego? É a crise. Os cortes atrás de cortes? É a crise. Uma queda de granizo em Agosto? É a crise. E, agora, começamos a ouvir cantos de vitória: “Matou-se a crise!, Portugal é um país ‘muita’ bom para se ter um futuro!, Já está, já passaram todos os males financeiros deste país!”

Compreendo que seja preciso restabelecer a confiança dos investidores (chineses, se estivermos a falar com António Costa) e oferecer uma réstia de esperança a quem por estas bandas vive, mas a mentira não pode ser um argumento para nada. Muito menos para isto.

Há dias, alguém na Assembleia da República dizia, pleno de confiança, que “os portugueses venceram a crise”. Não é verdade. Os portugueses são pessoas, de carne e osso, que precisam de comer, de beber, de pagar transportes, de pôr gasolina nos carros, de pagar a água e a luz e o gás, de comprar livros, de dar umas voltas com as namoradas e com os filhos e com os pais e com os avós e com os amigos. Os portugueses não são números em ecrãs, não são algarismos absolutos seguidos de comboios de zeros. Não somos milhares de milhões de euros, somos gente.

E é esta gente que não venceu crise nenhuma. Para já, porque foi lançada à revelia para uma luta que não era sua. Isto não tem sido um duelo, um mano a mano, cada um com seu escudo e sua espada. Não: isto foi lançar o escravo aos leões e agora é um vê-se-te-avias, os leões a querer comer e a malta a querer fugir. Haverá vitória possível? Naturalmente que não. Porque, por muito agradáveis que agora pareçam os algarismos, o mal está feito. Não é por se vencer uma guerra que os mortos retornam à vida, pois não?

Posso dar o vivo exemplo de muitos que comigo compartilham uma geração: saímos das nossas licenciaturas com a vontade de singrar. Para alguns, nos quais até tive a felicidade de me incluir, a coisa correu bem. Tivemos empregos, pudemos começar a sonhar com uma vida melhor: sair de casa dos pais, talvez pagar um carrito velhote, ser auto-suficiente, por aí fora. E depois veio essa madrasta da crise, que deu cabo de orçamentos de empresas, que não tiveram outro remédio senão chutar-nos para o desemprego – sei do que falo, aconteceu comigo. E depois outros houve que se aproveitaram dos assuntos da carteira para dar justificações injustificáveis, dizendo que não tinham possibilidades ao mesmo tempo que notas de quinhentos lhes espreitavam pelos bolsos fora. E nós sem saber muito bem o que fazer, sem capital para investir num negócio próprio, a ver uns bravos amigos zarpar para se atrever no estrangeiro (muitos deles estampando-se e regressando, sabendo que a emigração não é o Shangri-La). Muitos de nós, eu incluído, tivemos de abandonar estudos, largar mestrados e doutoramentos porque era, simplesmente, insustentável. E acaba-se a esperança e acaba-se a vida e damos por nós a pensar em disparates dos grandes, daqueles capazes de fazer chegar mais rápido a morte a um gajo.

Depois de tudo isto, e só porque estamos em ano eleitoral, temos de levar com estas estórias do vigário, que ganhámos a crise, que estamos capacitados para derrubar qualquer fragilidade económico-financeira que por aí ande – e não deixem que ouçamos o que lhes sai em surdina, entredentes, “até à próxima que nos caia em cima”… Senhores das gravatas que dizem mandar nisto tudo, não brinquem com as pessoas. Somos serenos, bem o temos visto. Mas não somos burros. A crise acabou, o tanas. A crise acaba quando as pessoas voltarem a ter sonhos nos olhos. Até lá, agradece-se uma ponta de decência.

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