Istambul, não direi o teu nome

O que é feito das multidões, das filas de turistas, do ziguezague dos carros e daquela pluriforme urgência de viver?

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José Manuel Ríos Valiente / Flickr

1. A cidade parece transbordar para o mar, de tão bojuda. Um ventre abobadado, com pontiagudos minaretes aqui e ali espetando o céu. Ao longo da ponte, centenas de pescadores plantam as suas canas no leito marítimo e acenam com peixes cor de prata que faíscam contra a luz. De quando em quando, às horas destinadas, a vozearia das mesquitas preenche o ar, arrastando os estrangeiros para uma languidez inexplicável. No regresso a casa, milhares de pessoas acotovelam-se no bazar das especiarias abastecendo-se de odores ou comendo peixe frito numa polifonia desordenada que é, assim o sinto, um sinal de alegria e resistência.

2. No grande bazar, a azáfama de um organismo com as suas veias e nervos estende-se correndo pelo labirinto, onde as bifurcações nos obrigam a escolher o caminho com um sorriso tonto, perante as insistências dos vendedores que disputam atenções sem deixar de beber o chá, metodicamente distribuído por um exército de serventes que equilibram, em exercício de rotina malabarista, tabuleiros carregados de copos do avermelhado líquido. Dos restaurantes chegam pratos de comida, porque nem por um minuto os comerciantes esquecem a sua razão de estar ali, esse negócio antigo, arte de linguagem afiada ao longo de gerações, uma reciprocidade de atenções em que alguém tem de ganhar, sem contudo o que perde se sinta esmagado.

3. Num domingo de neblina densa, ao chegar à grande praça onde as duas mesquitas se confrontam num duelo silencioso de séculos, parece que a cidade desapareceu, tal a tranquilidade mansa que se apodera de nós. O que é feito das multidões, das filas de turistas, do ziguezague dos carros e daquela pluriforme urgência de viver? Nada. Quase sentimos os próprios passos e perguntamo-nos se estamos mesmo vivos ou se somos apenas sombras, fantasmas, uma vaga presença com pernas, um coração esquecido no frio.

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João Teixeira Lopes é sociólogo e docente na Universidade do Porto

4. No Museu da Inocência há uma vitrina com dezenas de miniaturas de cães de porcelana, daquelas que estamos habituados a ver sobre os naperons dos dorsos televisivos. Mas, na vida real desta cidade, os gatos esticam-se nas montras das lojas ou nos sofás das boutiques, sem dar por nós; os cães passeiam-se nos jardins do palácio do sultão, absorvendo os magros raios de sol e à nossa volta, gatos e cães, numa harmonia perfeita com as pessoas, alimentando-se disto e daquilo, sujos e maltrapilhos, mas sem grades ou prisões de louça "kitsch".

5. Harém significa, a um mesmo tempo, lugar proibido, secreto, sagrado e habitado por mulheres. A aliança perfeita entre dominação masculina, propriedade privada e religião, com um toque de orientalismo para alimentar as fantasias ocidentais de sedas, luxúrias e musicais concubinas. Contudo, na minha memória permanecerá sempre aquela fotografia de raparigas turcas libertadas em 1931 do último harém. Riem alvoroçadas, naquele limbo nervoso de alegria, medo e espanto.

6. As medusas repousam para sempre no palácio subterrâneo da cisterna, onde só a água repercute os ecos desse momento primordial em que a cabeça cortada por Perseu liberta a força imensa de Pégaso, cavalo alado. Não olharás a sua face, pois em pedra te transformarás, mas demorarás, obstinado, no deslumbramento sorrateiro do reflexo que a luz espelha no escudo.

7. Por fim as ruas, correria louca entre muralhas, um sem fim de minúsculos veios hesitantes, desaparecendo na retina, à medida que o barco se afasta numa algazarra de gaivotas famintas.

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