Alzheimer: compreender uma doença com fotografias e sons

Projecto Antípodas, de Luís Montanha e Pedro Cruz, é um passeio pelo "cérebro de um doente". Como vê o mundo alguém com Alzheimer? Há um "crowdfunding" a decorrer e uma exposição prevista

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Luís Montanha

Um dia, enquanto deitava a avó e tentava acalmá-la, Luís Montanha intrigou-se: "Do nada, ela passou de um estado muito agitado para um muito calmo. A olhar para o tecto". O neto, e frequentemente cuidador, não conseguiu deixar de pensar neste "processamento de dois mundos opostos". Como é que um doente com Alzheimer, ou outro tipo de demência — na verdade, a avó sofre de Parkinson —, percepciona o exterior e vive o interior? Que impacto têm para ele os gestos, as palavras e os sons? No dia seguinte, Luís deitou-se na cama da avó a pensar no que tinha acontecido e acabou a delinear Antípodas, um projecto que é uma espécie de "cartografia do invisível" e que mistura fotografia e som para tentar mostrar como é que uma pessoa com Alzheimer vê o mundo.

Apesar de ser pensado para qualquer pessoa que queira perceber melhor a doença, Antípodas é especialmente desenhado como uma viagem que pode ser útil para os cuidadores. "Percebi rapidamente que a doença era complexa e que ia precisar de muito mais ferramentas do que aquelas que tinha para saber lidar com ela e, acima de tudo, para proporcionar um determinado bem-estar à minha avó", contou ao P3 o fotógrafo. Luís desenvolveu este projecto em parceria com Pedro Cruz, responsável pela linguagem sonora, e lançou agora um "crowdfunding" para financiar uma exposição de 30 imagens a incluir no Festival Jardins Efémeros, em Julho, em Viseu.

A proposta dos dois criativos é que a exposição, que terá lugar numa casa de dois pisos, seja uma espécie de passeio pelo "cérebro de um doente" com demência, da qual o Alzheimer é a doença mais comum: calcula-se que afecte cerca de 90 mil portugueses. "Queremos reproduzir o que hipoteticamente se passa com estas pessoas", explica Luís Montanha, 26 anos. Haverá na exposição uma forte "interactividade entre o espectador e a fotografia mediada pelo som, que se activa através de sensores movimento", acrescenta Pedro Cruz, 31 anos. "Vai haver duas fontes sonoras: um leitor de mp3, que o espectador recebe no início e que terá uma faixa sonora que metaforiza a consciência interna de um doente, e sons activados por sensores de movimento consoante a posição da pessoa e a proximidade com uma série de imagens."

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O projecto está ainda em desenvolvimento Luís Montanha

Como todas as doenças do foro da demência, o Alzheimer — caracterizado por uma deterioração global, progressiva e irreversível de funções cognitivas como a memória, a atenção, a concentração, a linguagem ou o pensamento — "não tem um ponto estável", analisa o fotógrafo, natural de Vila Real. "Senti sempre que a doença é muito dinâmica e versátil e quisemos que isso se reflectisse no trabalho. A exposição vai variar entre momentos de lucidez e momentos de ansiedade, transmitidos por estas fotografias com som".

Mais exposições e um livro

Para "financiar a impressão do projecto e a compra de material de som" necessários para a realização da exposição, Luís e Pedro criaram uma campanha de "crowdfunding", a decorrer até 14 de Abril, que tem como meta alcançar os 1800 euros. Uma das contrapartidas para quem apoiar o projecto com 40 euros, ou mais, é o direito a um "booklet", uma espécie de "protótipo" do que os criativos, que se conheceram na licenciatura em Cinema que fizeram no Instituto Politécnico de Tomar, querem fazer mais tarde. "O livro é um projecto de futuro mas antes disso queremos ainda pensar num roteiro expositivo para levar o projecto a outros lugares".

A ideia por detrás do trabalho está já bem delineada e o percurso da exposição a que dará origem está fechado. "O mais importante em termos de conceito passa por não cair nas ideias mais óbvias de como é que uma imagem ressoa em termos de som", sublinha Pedro Cruz. E acrescenta: "Para nós, a razão principal deste projecto prende-se com a ideia de querer fazer algo interessante do ponto de vista social. Para mim, do ponto de vista mais técnico, é também uma oportunidade de me desafiar e perceber os limites entre o som e a imagem. Até agora sempre trabalhei com imagem em movimento. Aqui, estamos a estabelecer uma relação entre duas linguagens — a fotografia e o som — que não é uma relação óbvia."

O projecto fotográfico terá "muito pouca presença humana, pelo menos não no sentido de identidade". É sobretudo uma metáfora e foca-se no abstracto, aponta Luís, que tem fotografado sobretudo em casa da avó. "Como o projecto nasceu lá, tento alicerçar-me no quotidiano e nos objectos da própria casa para trabalhar com essa realidade."

Quando foi inesperadamente confrontado com a doença de Parkinson diagnosticada à avó, Luís sentiu-se "desesperado com a situação": "Por um lado, achava que não era capaz e, ao mesmo tempo, sentia que era minha missão cuidar dela", contou. "São doenças que afectam muito quem está à volta. Cada palavra, cada acção, cada gesto pode ter uma consequência sempre muito diferente e, por isso, é preciso uma noção muito grande do que fazer a cada segundo." E, pelo menos para isso, Antípodas — o nome é metaforicamente uma dicotomia entre a lucidez e a confusão que doentes com demência experimentam — já serviu a Luís. "A minha relação com a minha avó melhorou."

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