O regresso do Outono

Da Europa de cima não levo deslumbramento nenhum, estamos longe dos Vencidos da Vida ou de 68. Já aprendemos com estes o que tínhamos a aprender

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Nelson Garrido

Abro a janela, fruo o frio húmido, as folhas do parque lá de cima encontram o caminho da nossa janela. O Laginha dedilha doce a acompanhar a Maria João que cresce do computador, enquanto o gato defende a janela das folhas invasoras; olho para os caixotes, “os cartões” como dizem os portugueses de França, a nossa vida novamente encaixotada, desta vez a caminho de casa: Lisboa, à beira-mar plantada.

Os amigos em casa insistem “Não! Isto está pior do que nunca!”, os também fora meio incrédulos “Voltam, a sério?!”, a família calada com olhos grandes de desenho-animado japonês, a cachopa excitada com a possibilidade de avião, avião para ela é festa, praia e avós. Eu balanço o coiro contra uma criança, dois gatos, uma mala de roupa, o computador e os papéis de trabalho, metro e autocarro, daqui até Orly.

Daqui a meio mês vou estar a chorar as cebolas do Egipto: as bibliotecas luminosas, arejadas e cheias, a separação do estado e da igreja, as cores todas das ruas de Paris... hoje é altura de voltar. Armas e bagagens, garota e gatos, quadros e livros, papéis, roupa, tacharia, desgosto e saudades futuras dos sabores do mundo todo, dum sistema de transportes urbano a sério, dum estado funcional.

Da Europa de cima não levo deslumbramento nenhum, estamos longe dos Vencidos da Vida ou de 68. Já aprendemos com estes o que tínhamos a aprender, cheira-me que a vida pulsante e nova está a acontecer lá para a América do Sul. Estes velhos impérios, acabrunhados nas suas impotências, já nem tigres de papel são.

Da Maria João a música salta para um Vivaldi (está no “shuffle”): o 3º movimento do Outono, nem de propósito. Este Outono não é morte, é promessa de renovação. Também este Outono, como diz o Tolentino Mendonça, não é fim de história, é sonata de germinação, semente de coisa prometida. Temos muito que fazer aí, muito que semear pacientemente nesse nosso chão, muita força para reavivar, muita esperança que reanimar; porque como ensina o amigo Armando, a esperança tem sempre razão.

Acendo um cigarro e sopro o fumo para o tecto ainda arrendado, penso em Lisboa: arrumar novo ganha-pão, reaprender a dizer as bojardas baixinho, voltar a ter a casa cheia de amigos velhos, ver os meus pais e irmãos três vezes por semana, ensinar a criança a falar só uma língua de cada vez, os jornais que leio em papel mesmo, o Bairro Alto, a esplanada da faculdade, bica a cada esquina, escrever com os meus livros à volta, aprender a cozer uma feijoada com a minha mãe.

Sim, concentro-me no pastel-de-nata e na Amália, no bom porque não quero lidar agora com as misérias: o Pedro e o Paulo e o Aníbal e o resto da escumalha, a escola a ser desmontada, os hospitais a vapores e os tribunais com “problemas informáticos”, os bandalhos dos bancos e a ínclita classe empresarial nacional, os polícias racistas e a santa madre igreja, os dislates da Belinha do Banco Alimentar e o Marcelo de Maquiavel de pacotilha, o Rio a oferecer-se em última versão de Dom Sebastião analfabeto, a esquerda a subdividir-se infinitamente até à irrelevância final e o Costa à espera que a fruta podre lhe caia finalmente no colo... logo lido convosco quando aí chegar, por agora, estou a regressar.

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