O fascínio pelas viagens dos outros

Enfim, para todos os fascinados pelas viagens, o meu conselho é o de procurarem viajar mais (sim, é possível) e consumir menos as viagens dos outros

Foto
fdecomite/FLICKR

Antes de começar esta crónica, permitam-me uma declaração de interesses: não sou um fascinado por viagens. Ou melhor, gosto de viajar e compreendo o prazer que a viagem pode dar. Mas daí até ser a melhor coisa do mundo… É que há prazeres na vida que são muito melhores do que as viagens.

Dito isto, intriga-me o fascínio que muita gente tem pelas viagens dos outros. Normalmente, essas pessoas dizem que o que mais gostam de fazer na vida é viajar e sempre que amigos, conhecidos, ou desconhecidos que se tornam mediáticos, encetam viagens, ficam sedentos dos relatos que os viajantes têm para fazer sobre as suas deambulações geográficas.

Sei bem que uma história ou um relato pode ter o condão de transportar o leitor ou o ouvinte para uma viagem onírica em que nos sentimos na pele do viajante, como se tivéssemos sido nós a calcorrear os caminhos. Mas, para esse efeito, prefiro ler um livro bem escrito sobre uma viagem inventada do que um mal escrito sobre uma viagem real. Porém, o que abunda são relatos pobres (porque são escritos por viajantes e não por escritores) de viagens reais que, ainda assim, atraem uma grande audiência. Mas, depois, interrogo-me: não seria mais interessante, para quem se fascina tanto por viagens, serem eles próprios, de carne e osso, ao vivo e a cores a encetarem as suas viagens? Já sei o que me vão dizer: as viagens são caras, nem todos nos podemos dar a esse luxo. E o tempo? Quem tem tempo para andar a viajar pelo mundo?

Curiosamente, essas objecções têm um lado de verdade, outro de mentira.

Quanto à verdade, sim as viagens recreativas são um luxo dos países ricos. Só no mundo ocidental encontramos pessoas que fazem “gap years”, que dão a volta ao mundo em veleiro ou que andam meses a conhecer o mundo subdesenvolvido graças ao baixo custo de vida dessas paragens. Não há, nunca ouvi falar, de etíopes ou sudaneses que se andem a divertir em viagens exploratórias pelo continente europeu… As únicas viagens que os nativos dos países pobres fazem são para fugir das guerras (desaguando em belíssimos campos de refugiados) ou da fome (que tantas vezes acabam debaixo do mar antes de conseguirem chegar a Lampedusa).

Quanto à mentira, uma pessoa de um país rico, mesmo que não muito abonada monetariamente, pode escolher fazer estas viagens. Basta um pouco de planificação, de escolha de rotas mais económicas e a procura de patrocínios que podem ser encontrados. É que, como já disse, todo este imaginário das viagens tem um potencial mediático incrível. Os jornais, as revistas e mesmo as televisões derretem-se para divulgar estes acontecimentos: fulaninho de tal vai dar a volta ao mundo de cima para baixo (do Pólo Norte ao Pólo Sul); sicraninho vai conhecer a América Latina enquanto toca flauta; beltrano e sicrano vão de Paris ao Monte Branco de triciclo; ainda outro vai percorrer todos os oceanos a bordo de cargueiros e petroleiros; e há ainda aquele que vai conhecer a Ásia em ziguezague. E os media adoram isto porque as audiências assim o determinam. Ainda há pouco tempo um telejornal noticiava o facto de um português ter acabado de conhecer todos os países do mundo. Isso é notícia? Faz-me lembrar os jornais de província, no início do século vinte, que noticiavam coisas como: “acaba de chegar a São João do Buraco o excelentíssimo visconde da Beira Baixa, acompanhado da família, onde permanecerá por todo o Verão.”

Enfim, para todos os fascinados pelas viagens, o meu conselho é o de procurarem viajar mais (sim, é possível) e consumir menos as viagens dos outros.

Duas notas finais: irrita-me a presunção de alguns viajantes que se julgam mais importantes do que os outros, como se soubessem mais da vida ou fossem mais cultos só porque viajaram. Nenhuma é verdade. Algumas das mentes mais brilhantes e cultas do mundo pouco viajaram (Fernando Pessoa ou Kant) e para se conhecer a vida é preciso conhecermo-nos a nós próprios, não os lugares. Depois, o facto de haver “viajantes profissionais” é um claro sintoma de se estar num país rico. Porém, se todos virássemos viajantes profissionais o mundo assistiria a uma notável transformação: regressaríamos, num abrir e fechar de olhos, para a pré-história nómada, de caçadores recolectores, pois todos estaríamos, sempre, em viagem…

Sugerir correcção
Comentar