Eu sei porque te calas

A nossa aparente subordinação é uma estratégia de sobrevivência, um teatro que nos dispomos encenar para nos protegermos das represálias a que estamos diariamente sujeitos

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Matthew Lew/Flickr

Há uma pergunta que assola o debate contemporâneo sobre a participação política: porque é que, apesar de sermos livres para nos insurgirmos contra este sistema político, que é totalmente injusto e contrário aos nossos interesses, continuamos calados? Há duas respostas clássicas a esta pergunta. E outra, que é a minha.

Há quem pense que os meios de comunicação social, a igreja, a escola e outros aparelhos ideológicos do Estado exercem uma influência tal que acabamos por acreditar nos valores que justificam a nossa própria subserviência. Esta teoria afirma, por exemplo, que nós acreditamos que estamos desempregados porque não somos suficientemente empreendedores. Outros sustentam que estamos calados porque acreditamos que esta ordem social é natural e que, independentemente do que façamos, os poderosos continuarão a mandar e os pequenos a obedecer.

Estas duas teses têm em comum o facto de afirmarem que estamos convencidos. Ou convencidos que este é o melhor sistema, ou que não há alternativa. Ou seja, estamos enclausurados numa teia ideológica que nos leva a ler o mundo de uma forma contrária aos nossos próprios interesses. Mas isso é condescendência da elite intelectual e económica. Pensar que estamos calados porque não compreendemos o que nos está a acontecer é típico de pensadores de gabinete. Ou de quem precisa justificar os privilégios da sua posição.

A nossa aparente subordinação é uma estratégia de sobrevivência, um teatro que nos dispomos encenar para nos protegermos das represálias a que estamos diariamente sujeitos. Isto pode acontecer no trabalho, para não sermos despedidos, em casa, para evitarmos uma agressão doméstica, ou na escola, para o professor não nos dar má nota.

Nós apenas podemos falar, insultar e revoltarmo-nos em espaços protegidos, onde quem exerce o poder sobre nós não nos oiça. Ou, em espaços vigiados, utilizando uma linguagem disfarçada, rumores, ameaças ou acções anónimas, entre outras formas de resistência. É a nossa guerra de guerrilha. E se acreditássemos que uns nasceram para mandar e outros para obedecer, não criaríamos poemas transgressores, canções de intervenção, ditos populares, peças de teatro satíricas ou utopias que ecoam um mundo imaginário onde ninguém pode exercer poder sistemático sobre ninguém.

É precisamente este discurso oculto, como lhe chama James Scott, o cimento para a acção política que, com determinadas condições, será trazido para o espaço público e que dá origem a reais transformações sociais. Não é de estranhar, portanto, que a maior preocupação dos governos autoritários seja vigiar todos os nossos passos, para não conseguirmos criar espaços próprios que permitam o seu desenvolvimento.

Até ao dia em que alguém tiver a coragem, ou a loucura, de dizer publicamente o que dizemos todos os dias clandestinamente, continuemos, pois, a alimentar as nossas conversas, em casa ou no café, as nossas associações, os nossos livros, as nossas músicas, os nossos eventos de iniciativa popular ou outros espaços nos quais somos livres de dizer o que realmente pensamos. Reforcemos os nossos espaços, que são agora de liberdade oculta, mas também a génese dos nossos espaços futuros de liberdade pública. E nesse dia, que alguém igual a nós se arriscar a trazer à luz o discurso reprimido, será a festa da libertação. Pode ser apenas um dia em que não tenhamos que fingir uma atitude de deferência. Mas também pode ser o primeiro dia da revolução.

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