Desmistificando: a classe médica também é precária

Neste momento, muitos são os médicos que garantem os Bancos de Urgências sem direito ao período mínimo de descanso de 11 horas entre o normal horário de 8 horas e a entrada no banco

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Enric Vives-Rubio

O Serviço Nacional de Saúde tem sido alvo dos mais variados ataques pela equipa ministerial que insiste em mercantilizar a medicina e os doentes, usando os profissionais de saúde como arma de arremesso político para o efeito. Quando faltam mais de 500 médicos de família em Portugal e se investe três milhões de euros num sistema de “software” de prescrição médica [PEM, também designado de “programa para enlouquecer médicos”], que dificulta mais do que facilita o trabalho dos médicos, o que dizer das condições de trabalho da classe médica em Portugal?

Alguém que esteja realmente empenhado em integrar a profissão médica, para além de frequentar os seis anos de curso base, terá de passar pelo ano comum, após o qual esperam ainda mais quatro anos obrigatórios para adquirir a Especialidade, pelo menos. São 11 anos de estudos e de avaliações constantes, em que os últimos cinco anos se passam já — a tempo inteiro — em campo de batalha, onde todos os limites são testados à custa de governos que tanto têm investido na precarização da profissão. É de referir a forma dissimulada como este Governo tem vindo a construir o caminho para tornar a contratação médica dependente de vínculos precários, como a contratação via ETT's (trabalho temporário) ou o recurso a falsos recibos verdes. Usa a falta de verbas como justificação para desresponsabilizar-se e entregar médicos a entidades intermediárias que nada mais fazem do que sugar salários.

Em pleno cenário de crise um jovem médico, ainda a frequentar Especialidade, não ganhará mais de 1300 euros por mês. A este jovem cabe a responsabilidade de bem gerir as vidas que tenha em mãos, ao mesmo tempo em que assiste ao desmantelamento do SNS como o conhece: acentua-se a falta de material essencial para a prestação de cuidados básicos, juntamente com a falta de enfermeiros e auxiliares que o ajudem a concretizar a sua tarefa enquanto médico.

Em relação ao trabalho extraordinário, imaginemos uma linha de montagem fabril em funcionamento 24 sobre 24 horas: um operário fabril não pode permanecer mais de 8 horas num turno; correndo-se o risco, se assim acontecer, de o cansaço imputado ao trabalhador vir a prejudicá-lo ou influenciar o normal funcionamento da linha. Imaginemos o mesmo cenário, mas num serviço hospitalar em que o risco de vida do trabalhador abarca também o risco de vida dos utentes que se encontrem sobre a sua responsabilidade. Neste momento, muitos são os médicos que garantem os Bancos de Urgências sem direito ao período mínimo de descanso de 11 horas entre o normal horário de oito horas e a entrada no banco. Cansados e confrontados com a falta de pessoal técnico e de material, é nestas condições que lhes é exigido garantir a funcionalidade e eficácia dos serviços hospitalares.

A par desta grande responsabilidade, a classe médica ainda tem de aturar declarações desprovidas de conteúdo, como as de Paulo Macedo, que insiste em desvalorizar o descontentamento dos médicos, pois “muitas outras classes profissionais estão a trabalhar em condições difíceis, com rendimentos menores”. Queixem-se menos e trabalhem mais que isto está mal para todos!, diz o ex-banqueiro da Saúde Privada.

Em circunstâncias que põem em causa a sua própria saúde, a dos utentes e o próprio SNS, podemos realmente achar que a classe médica não é, também ela, precária e mal paga? Se assim se tratam profissionais de saúde, algo de muito grave se passa com em Portugal.

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