Retratos de artistas que vivem com menos de 500 euros por mês

Estes jovens sobrevivem da cultura. Os seus relatos são marcados pela precariedade, por baixos rendimentos e até ilegalidades

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Bruno Leite sempre trabalhou a recibos verdes Fernando Veludo/ nFactos

São jovens, licenciados, trabalham na área para a qual estão qualificados e fazem o que gostam. Poderia ser o cenário perfeito, não fosse o salário no fim do mês: menos de 500 euros. Um actor, uma bailarina e uma animadora contam como sobrevivem a trabalhar num sector que já teve melhores dias em Portugal: a cultura.

Bruno Leite, 30 anos, actor

“O teatro não é uma arte para se ganhar dinheiro”

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O salário médio mensal de Sílvia Ramos varia entre os 300 e os 400 euros Fernando Veludo/ nFactos

É actor profissional desde 2006 e sempre soube que não tinha escolhido um caminho fácil. “Sempre tive a noção de que seria difícil. O teatro não é uma arte para se ganhar dinheiro, mas sim para gostar daquilo que se faz e ir saboreando com o tempo”, afirma Bruno Leite.

O actor do Porto, que sempre trabalhou a recibos verdes, viu ao longo destes anos a situação profissional da sua classe deteriorar-se. “De 2006 a 2010, a área de animação e teatro de rua era muito forte, ganhava-se muito bem. A partir daí, houve mais cortes por parte das instituições e a produção dos grupos de teatro caiu muito”, explica Bruno. “Hoje questiono-me para onde é que vão os actores que saem das escolas”.

Actualmente, através de várias actividades, entre formações, teatro infantil e projectos pessoais, Bruno tem um salário médio de 500 euros por mês, dos quais são retirados 120 euros para a Segurança Social. “Não consigo ter um ordenado decente, apesar de tudo aquilo que faço, não consigo tirar um ordenado como o de um trabalhador licenciado”, diz, afirmando que a sua profissão é cada vez menos valorizada no país.

Numa rotina em que é impossível pensar em planos a longo prazo, Bruno conhece bem os trâmites legais de um trabalhador independente. Tem de estar sempre atento aos escalões da Segurança Social (está no primeiro com redução) e já não é a primeira vez que pede a um colega de trabalho para lhe passar um recibo, de forma a evitar ter mais rendimentos no fim do ano e, por consequência, pagar mais impostos ou subir de escalão.

Nos meses de mais trabalho, Julho, Agosto e Dezembro, Bruno consegue facturar “quase o dobro” da sua média normal, aproveitando para fazer “um pé-de-meia”. Para poupar, sempre partilhou casa. E férias? “Vou tirando, mas são férias criativas. Faço estágios ou workshops, tenho que ter sempre uma na manga”. Investir na formação foi sempre um objectivo, até como forma de conseguir mais oportunidades de trabalho. “Sou actor, palhaço, bailarino, acrobata, encenador, formador, produtor. Temos de fazer de tudo um pouco”, sublinha. Sair do país pode ser uma opção, mas mudar de área está fora de questão. “Que ninguém me venha dizer que é impossível, porque é possível, mas tens que trabalhar bastante, não podes parar”, sentencia o actor.

Susana, 32 anos, bailarina

“Trabalhar sem declarar é uma prática corrente na minha área”

Susana mede com cuidado as palavras para falar da sua situação profissional e até recorre a um tom de voz mais baixo. Ilegal é a palavra certa, mas Susana, nome fictício desta bailarina que quis manter o anonimato, não gosta de usá-la. “Ilegal é muito forte, pareço um emigrante que está a trabalhar sem direitos”, diz.

Ilegal porque desde que a Segurança Social mudou a base de incidência para um valor fixo, começou a ser insustentável pagar todos os meses. Hoje em dia, os “300 e tal euros” que recebe das aulas de dança que dá em escolas particulares na área metropolitana do Porto não são declarados ao Estado. Susana encerrou actividade nas Finanças há cerca de um ano. “Tornou-se insustentável porque eu não tenho como pagar todos os meses 156 euros de segurança social”, afirma a bailarina.

Depois de ter acabado a licenciatura em dança, Susana não quis começar a dar aulas, pois tinha como objectivo dedicar-se a projectos na área. Face à falta de oportunidades, a bailarina teve de se voltar para o ensino, o que lhe dá um rendimento mais ou menos fixo e, ao mesmo tempo, não lhe tira a “liberdade criativa” que precisa para participar noutros projectos. Estes são um “balão de ar” no seu orçamento, mas implicam algumas manobras na hora de receber o pagamento. Quando não são contratos temporários, Susana tem de passar um acto isolado – um único recibo por aquele serviço – ou então pede a um colega para lhe passar um recibo verde, pagando-lhe depois os impostos.

Todos estes esquemas “são muito frequentes” nas áreas da dança e das artes do espectáculo, reconhece a bailarina. “Trabalhar sem declarar é uma prática corrente na minha área, até mesmo em certas entidades patronais que assim não pagam a Segurança Social. Depois é uma bola de neve”, lamenta.

Pelo menos para já, Susana não quer regularizar a sua situação. “Já não penso muito no assunto, não vou mudar enquanto não se proporcionar uma mudança, até porque não me incomodo em estar fora da lei”, confessa. Enquanto isso, a bailarina vai adiando planos para o futuro. Vive em união de facto e gostava de ter um filho. “O meu relógio biológico está activo, mas a minha parte racional diz que não, nem pensar”.

Sílvia Ramos, 36 anos, animadora infantil

“Temos de juntar durante o Verão para depois aguentar durante o Inverno”

Foi numa manhã de sol que encontramos Sílvia Ramos no núcleo rural do Parque da Cidade, no Porto. O local não foi escolhido ao acaso: é por entre o verde destes jardins que Sílvia organiza festas de aniversário personalizadas e actividades de férias para crianças. Com formação em português e inglês, o trabalho com crianças foi sempre uma paixão que Sílvia decidiu apostar. “Encontrei a gratificação profissional que procurava nesta área”, afirma.

Hoje, com 36 anos, Sílvia não se arrepende de ter escolhido este caminho: “Faço aquilo de que mais gosto e, só por isso, já me considero privilegiada”. Mas reconhece que já foi uma área mais rentável. “Durante os primeiros anos, quando tudo corria muito bem, cresci o suficiente para pensar em abrir um espaço e ter uma empresa”, conta. Ao fim de um ano e de cinco mil euros investidos, Sílvia teve de dar baixa na actividade da empresa e continuar a trabalhar a recibos verdes. “Ter uma empresa aberta em Portugal acarreta uma quantidade de custos que a maior parte das pessoas não tem a mínima ideia, desde um contabilista fixo, impostos, relatórios até regras de higiene e segurança no trabalho. São encargos que somados dão facilmente mil euros de despesas mensais”, refere.

Se durante um tempo Sílvia conseguiu suportar estas despesas, hoje em dia o seu salário médio mensal é de 300 a 400 euros, valor que aumenta significativamente nos meses de Verão e na altura do Natal. É quase como na história da formiga e da cigarra, “temos que juntar durante o Verão para depois aguentar durante o Inverno”, lembra.

Por ser também professora, a animadora cultural tenta recorrer a contratos temporários para dar aulas, o que pode ser uma ajuda nos meses mais fracos, principalmente, no que toca ao pagamento da Segurança Social. “Há meses em que não dá para pagar e que depois é preciso fazer as contas e pagar em prestações”, refere Sílvia.

Esta vida na corda bamba, já levou Sílvia a pensar em emigrar. Há dois anos, fez as malas, alugou o lugar de garagem e os dois quartos do apartamento que divide com o companheiro e ficou a dormir na sala, à espera de um contrato de trabalho no Brasil. “O dito contrato não chegou a aparecer” e Sílvia optou por ficar, até porque “estar fora dois ou três anos” pode significar perder clientes e contactos, tendo que “começar tudo zero”. “Isso assusta-me”, salienta. Para rentabilizar ao máximo o que ganha, Sílvia tem que ser uma mulher de armas: “eu faço tudo, faço o site, dou o orçamento, trato com os fornecedores, com os clientes, monto a festa, faço a animação e, no fim, varro o chão”.

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