Fazer a mala

A emigração é esquisita porque estamos sempre a viajar e sempre a chegar a casa... às vezes dói, às vezes liberta, mas a maior parte do tempo só chateia ligeiramente

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JD Hancock/ Flickr

Bate Agosto e com ele a volta a casa, estando em França para fazer o estereótipo devíamos ir apinhados num Renault ou num Citroën a ouvir Tony Carreira, mas eu não tenho carta, a minha mulher só vai mais tarde e de toda a maneira preferimos música, por isso vai ser de avião com a criança (a Nossa Senhora da Agrela me acuda e dê paciência ao resto dos passageiros!).

Fazer a mala (sou de viajar leve e o grosso da tralha continua em Lisboa de todo o modo): computador (a música anda sempre comigo e tenho de levar as fotos que provam a lenta evolução da neta aos avós); máquina fotográfica (a miúda na praia vai ser impagável!); dois ou três empréstimos das bibliotecas públicas de Paris (bichos grossos que durem um mês); o passe recarregável da Carris (com um bocadinho de sorte os chulos ainda não o invalidaram); canetas e cadernos (um antropólogo anda sempre com cadernos atrás); as chaves de casa; o telemóvel português; calção de banho; o protector solar da garota; as higienes pessoais (escova de dentes e pasta, champô, etc.); as “t-shirts” melhorzinhas (para a minha mãe não dizer “mas tens necessidade de andar nessa figura?!”); pelo menos dois pares de calças; meias e cuecas e tal e tal; lenços; o relógio; óculos escuros; guardar espaço para prendas de aniversário atrasadas e para a papelada que já não faz falta do lado de cá; os ténis; mais canetas; o caderno para desenhar; o chapéu que há anos que não posso andar descapotado ao sol de Verão sem ficar à rasca com enxaquecas.

Tenho um mês: tenho de ir ver o mar; regar os cactos sobreviventes lá de casa; tenho de perder uma tarde na baixa de Lisboa e de me perder a subir para o Castelo; ver Lisboa de São Pedro de Alcântara; tenho de ir ver os meus avós a Mação; tenho de ir ver Mação; tenho de ir sorver o amarelo do Alentejo e o verde de Sintra; tenho de ir conhecer o gato novo e moer a gata velha dos meus irmãos; ver se a madrinha da América, os tios da Escócia e os primos da Irlanda e da Escandinávia não calham a estar em Lisboa também; tenho de me enfrascar no Bairro Alto pelo menos uma vez (fecharem o “Catacumbas” comigo fora, bandidos!); comprar o disco que me falta dos Clã; ver 15 telejornais com o meu pai para gozarmos com o português dos jornalistas, ver a minha mãe a mandar vir connosco da porta da cozinha, a minha irmã deitada no chão a ver televisão; levar a criança à Dona Cilinha da padaria, ao Ferreira da fruta e à malta na faculdade; gozar a esplanada da faculdade (nem que sejam só 10 minutos com a fuça ao sol); tenho de reunir o povo todo lá em casa; pastéis de nata da “Irlandesa”, sortido húngaro do “Marquês”, pão saloio, pão alentejano, broa, carcaças de lenha, feijoada da minha mãe, bife do “David da Buraca”, bitoque donde for, frango assado daquela velha muito porca lá ao pé de casa, caracóis, amêijoas à Bulhão Pato, bifanas de rulote, bolas de Berlim da Rua da Rosa às quatro da manhã, imperial numa esplanada sem lá deixar coiro e cabelo, bica bica bica sempre e em qualquer lado, com a facilidade dum copo de água. Tenho de ir ver, ouvir, sentir, cheirar e saborear o mar (o Sena é muito lindo, mas não tem ondas).

Chaves de cá e chaves de lá, dois telemóveis, dois números fixos, dois códigos postais, duas línguas, dois passes para os transportes, dois grupos de vizinhos que não faço muita questão em conhecer; a emigração é esquisita porque estamos sempre a viajar e sempre a chegar a casa... às vezes dói, às vezes liberta, mas a maior parte do tempo só chateia ligeiramente.

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