De certa maneira, um concerto para todos

O espectáculo "De certa maneira, um concerto para José Mario Branco" trouxe Marfa, Guta Naki, Chullage, JP Simões, Miguel Pedro e António Rafael dos Mão Morta, Ermo e o Coro dos Gambuzinos. E trouxe, sobretudo, um prolongado momento de catarse colectiva protagonizado por João Grosso

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João Grosso

Havia na sala quem não conhecesse o texto, quem nunca tivesse ouvido o FMI, aquela sucessão de frases acompanhadas por vezes com guitarra, a maior parte das vezes sem ela, por vezes com comoção e outras mais com furor e com raiva. Mas não foi só a esses que o texto (escrito de um só jorro, numa noite de fevereiro de 1979, e recitada num momento irrepetível, numa prestação febril de José Mario Branco no Teatro Aberto de 1982) impactou na passada sexta feira à noite na Sala Guilhermina Suggia, na Casa da Música.

A prestação do actor e encenador João Grosso, que subiu ao palco para recitar o texto FMI , sem papéis nem muletas, de um fôlego só, e com as devidas adaptações à nomenclatura dos nossos dias, não pôde deixar ninguém indiferente. Foi um momento de verdadeira catarse hipnótica. 

Antes dele - e antes disso - já se tinham ouvido versões e interpretações de músicas de José Mário Branco que dificilmente vão sair dos nossos ouvidos (ver galeria).Merece um particular destaque a interpretação de JP Simões, que depois da sua /nossa “Inquietação”, trouxe uma versão quase hipnótica de “Perfilados de medo”. Este poema, da autoria de Alexandre O’Neill, foi musicado por José Mário Branco para o álbum “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, gravado em 1971, quando estava exilado em Paris. E antes de JP Simões já tinha havido Chullage ( "O 3º amigo" e “Eu vim de longe”), já tinha havido Ermo, com Miguel Pedro e Anónio Rafael, dos Mão Morta, a tocar “Nevoeiro”, os Guta Naki (“Dairinhas" e "Canto dos torna-viagem”) e a Marfa (com “Engrenagem” e "Por terras de França”). E depois de JP Simões também já os Batida tinham electrizado a plateia, com a ajuda de Alexandre Francisco Diaphra e de Manuel Cruz (dos Diabo na Cruz). Foi numa actuação marcante, que passou pela músicas "Qual é coisa?” e "A cantiga é uma arma” e ainda um “Alevanta”, dito por AF Diaphra.

Já tinham, pois, passado pelo palco da sala Suggia muitos momentos musicais de boa memória. Mas foi quando João Grosso se voltou a sentar na cadeira (à excepção dos Gambozinos, os artistas estiveram sempre em palco) e deixou o microfone onde esteve posicionado durante muito mais de 20 minutos é que a audiência se levantou. Se levantou, para aplaudir longamente. Repetidamente. Como se, com aquelas palmas, estivessem a responder que sim, que “as conquistas de Abril eram só paleio” ou que não, que ninguém pode aceitar aquela acusação: “a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa”. Dito assim. Muitas vezes. Vociferado.

Quem não conhecia o texto tinha ficado mudo de espanto. Quem já o conhecia teve a oportunidade, finalmente, de sentir nas entranhas o que é ouvir palavras tão irónicas, mordazes, certeiras e contundentes. Foram vários socos do estômago, ainda que pelo meio tivesse havido sorrisos e até, pareceu-nos, algumas gargalhadas. Foram várias interpelações directas à espinha e a certeza de que foi preciso mudar muito pouco ao texto, para ele permanecer actualíssimo - bastou mudar o nome dos protagonistas políticos, do papa, de alguns jornalistas e jogadores de futebol e das cadeias de supermercado. Houve, neste texto de José Mario Branco, reinterpretado por João Grosso, uma espécie de invenção de nós. “Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, ah?”, gritou João Grosso, tal como tinha gritado, há 32 anos, José Mario Branco.

E teríamos saído todos petrificados daquela sala se, a seguir, não estivessem em palco as vozes doces do Grupo dos Gambozinhos. Acompanhados pelos Ermo, pediram ajuda ao “médico das almas” para escolher em que combate combater, numa versão do tema “Emigrantes de quarta geração”. A resposta estava aqui: “E tudo fica cada vez mais como está/Mas ao correr desta pena/Não fico à espera que venhas/Eu já sou o que virá”. 


O final que foi proporcionado pelos Gambozinos, que terminaram com “Os meninos do Amanhã (Elogio do Revolucionários)” serviu para apaziguar os sobressaltos políticos instigados durante a noite. Mas pouco. As vozes afinadas das crianças serviriam para acalmar qualquer tempestade, mais ainda quando começavam por trazer certezas “Os meninos de amanhã vão acordar num mundo novo/ e nos livros da escola ouvirão contar/quantas lutas se travaram para vida mudar”. Mas a interpelação ficou lá, nas mesmas vozes doces: “Há tanta gente virada para trás/gente que vive do menos mal e do tanto faz/mas o amor em que estou a pensar/ anda remando contra a maré, a desenquietar”.  Que dia é hoje, filho?

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