A arte de trocar umas palavras pelas outras

Imagine-se um intricado puzzle, de milhares e milhares de peças, em que cada pedaço de cartão tem o seu lugar específico. As peças são as palavras, o puzzle é o livro e o tradutor é quem performa o acto heróico

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Horia Varlan/Flickr

Não é daquelas coisas de que se dê conta, mas nem sempre as palavras de um livro são apenas da responsabilidade de quem as inventa. Quando um autor não fala a mesma língua que o seu público, falta o intermediário, o artista capaz de dominar na perfeição a técnica de substituir umas palavras pelas outras. E os bons tradutores têm de saber exactamente qual a palavra exacta a utilizar para ilustrar este ou aquele estrangeiro trejeito. Imagine-se um intricado puzzle, de milhares e milhares de peças, em que cada pedaço de cartão tem o seu lugar específico. As peças são as palavras, o puzzle é o livro e o tradutor é quem performa o acto heróico.

Pelo décimo quinto ano consecutivo, a Faculdade de Ciências Humanas (FCH) da Universidade Católica Portuguesa promove a atribuição do Prémio Traduzir a alunos do secundário. Alexandra Lopes, docente da faculdade e coordenadora do Traduzir, define dois objectivos para a entrega deste prémio: em primeiro, “dar visibilidade a uma actividade que, embora tenha uma indesmentível importância cultural, é socialmente pouco prestigiada e, além disso, estreitar relações entre ensinos secundário e universitário”.

O prémio será atribuído esta segunda-feira, dia 5 de Maio, na FCH. Só este ano, participaram 1200 estudantes. “Penso que isto se deve a uma multiplicidade de factores”, explica a coordenadora, “a apetência por experimentar a mão a traduzir textos, a vontade dos alunos de participar num concurso a nível nacional e com prémios aliciantes, a extinção da disciplina de Técnicas de Tradução no ensino secundário (o nome era infeliz e os conteúdos nem sempre apropriados, mas sempre era uma porta aberta para uma área do saber que diz respeito a todos), a vontade dos docentes de colaborarem em iniciativas estimulantes, entre muitas outras”.

Mas afinal de contas, que importância tem a tradução nos dias que correm? Alexandra Lopes explica: “a tradução é hoje, como sempre foi, uma atividade importantíssima em todas as culturas. Central mesmo. Permite-nos compreender melhor e estreitar laços com o outro como nosso par, estimula o respeito pela diferença (na língua, na história, na mundividência). Num certo sentido, a tradução há-de ser a mais velha profissão do mundo, porque o diálogo, as trocas comerciais, a diplomacia e a literatura ‘universal’ se alicerçam sempre na possibilidade de tradução”. “Embora tenhamos tendência para não reparar nela, a não ser quando a julgamos mal feita”, continua, “a tradução rodeia-nos e constrói-nos. Faz parte do que somos. Se decidirmos estar atentos, veremos que a tradução habita a nossa casa, os supermercados, os canais de televisão, as bibliotecas e livrarias, apublicidade, o cinema e teatro, os catálogos de exposições, os meios de comunicação, as tecnologias, os eletrodomésticos…”

Ainda que a vejamos não raras vezes na literatura, a tradução não é exclusiva dos livros. “Estende-se aos meios de comunicação — imprensa, televisão, rádio, etc. —, à publicidade, ao cinema, aos pacotes de "cornflakes", ao direito internacional e à diplomacia, às bulas dos medicamentos, ao Google Translator, aos catálogos de arte, aos manuais de Economia e Medicina, aos manuais de instrução de fogões, automóveis, frigoríficos, computadores, às ementas de restaurantes, à informação nos hotéis, às indicações nos meios de transporte internacionais. A tradução faz parte do nosso dia-a-dia.”

Ao longo dos anos de atribuição do Traduzir pela FCH, muitos foram os rostos emblemáticos a fazer parte do júri. Desde o recentemente falecido Vasco Graça Moura até Teresa Sustelo e Jorge Vaz de Carvalho, entre muitos outros. Este ano, a tradutora de Thomas Mann, Teresa Seruya, é a jurada.

Quanto mais escrevo, mais difícil considero o domínio da palavra, cada qual com o seu benigno e hermético significado. Por isso mesmo, admiro-me que mais de um milhar de jovens entre os 15 e os 17 anos se atrevam a aventurar-se pelos meandros do mundo das palavras. Pasmo mas gabo-lhes a coragem. E a FCH tem mérito nisso: “Penso que teremos contribuído para alguma consciencialização acerca do papel e do poder da tradução na cultura portuguesa. Fazemos um balanço muito positivo dos 15 anos deste prémio”. Há que continuar e perpetuar.

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