25 de Abril: estava lá, mas não vi

Hoje, vemos jovens “livres... mas amordaçados", sem esperança nenhuma e sem ideias para lutar por um futuro que seja menos sombrio

Foto
Eduardo Balsa/Flickr

Tinha eu tanto tempo no mundo quanto o tempo que estive na barriga da minha mãe, esses respeitosos nove meses, quando se deu a “Revolução dos Cravos”. “Não é fácil arquitectar nada de realmente relevante e que possa ser dito sucintamente”, disse-me o meu pai, quando lhe pedi ajuda. E é verdade.

Não podemos correr o risco de simplificar a maior revolução pacífica de sempre, aquela que também e tão bem nos caracteriza, e que prova que os “brandos costumes” não são necessária e exclusivamente negativos, enquanto traço comum deste povo.

Ainda assim, vou observar duas pontas de um grande icebergue, duas situações que não definem “o que eram” e o que foram aqueles tempos, mas ajudam a caracterizá-lo.

Era comum, para quem trabalhasse em empresas privadas, saber-se que a gestão da mesma tinha uma forte tendência política, tipicamente pró-regime. Nesse contexto, ser assinante da "Seara Nova" era já de si um risco, quanto mais levá-la para o trabalho e divulgar o pouco que a censura ia deixando passar.

Tão clandestinamente quando se pudesse, circulavam "umas coisas" que eram para divulgação popular e que, para que tal fosse possível, se pedia a amigos que se tinham na secção de reproduções para se fazerem algumas cópias (às escondidas, claro!), para posterior distribuição; por exemplo, a carta que Mário Soares escreveu ao então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, ou ainda a divulgação do livro “Estórias", do Lualdino Vieira”, que se ia buscar à Livraria Barata na Avenida de Roma, onde, naturalemente, não estava à venda, mas... para alguns, sempre se arranjavam uns exemplares.

Infantário “Dorme e Brinca”

Naquela quinta-feira, como habitualmente o fazia, a minha mãe foi levar o seu menino ao infantário “Dorme e Brinca”, na Parede. Apanhou o comboio das 8h05 para Lisboa como sempre e, ao chegar ao Cais do Sodré, viu um grande aparato com soldados e chaimites... era capaz de jurar que estávamos em guerra. Ainda atravessou a praça para ir pela Rua do Arsenal a caminho do Metropolitano (no Rossio) mas, como a confusão era muita, voltou a correr para o Cais do Sodré, para apanhar o primeiro comboio e me ir buscar para irmos para casa. Chegada à porta de casa, onde vivíamos há pouco mais de quatro meses, a nossa vizinha veio ter connosco a correr, pois estava muito preocupada… achava uma irresponsabilidade a minha mãe ter saído sem sabermos que havia uma revolução, porque a rádio a transmitia, aconselhando calma e prudência à população, que não deveriam sair de casa.

Curiosamente, numa sociedade em que doutores e tecelões (e suas esposas, burguesas donas-de-casa) não falavam muito nem se misturavam tão-pouco, é interessante saber que, nesse mesmo dia, a nossa vizinha se dignou a atravessar a rua e a ir falar com a vizinha da frente pela primeira vez em dez anos naquela morada. Preocupada connosco, ultrapassou o estigma social, e tentou saber se ela nos teria visto sair de casa. Como as coisas são! Aquele dia também serviu para aproximar as vizinhas...

Para quem o viveu de forma consciente, o 25 de Abril surgiu como uma lufada de esperança, na certeza de que poderíamos viver em liberdade crentes num futuro melhor. Aliás, é essa a grande diferença com os dias de hoje: vemos jovens “livres... mas amordaçados", sem esperança nenhuma e sem ideias para lutar por um futuro que seja menos sombrio. E, tristemente, vemos também os "menos jovens" de hoje, os que fizeram o 25 de Abril, acomodados e já sem vontade de voltar à luta.

Falar do pós-25 de Abril, do 25 de Novembro, da delapidação da nossa agricultura, da nossa indústria (CUF, Lisnave, Quimigal, etc.) é um pesadelo, até porque os erros se têm repetido com a venda das cotas de pesca, com a concessão de subsídios por hectare de terrenos incultos, pelo apoio à plantação de eucaliptos, tudo a troco de umas acções de um qualquer BPN ou de um "tachito" num ministério ou câmara municipal. Ver a população qualificada abandonar o país é para os "jovens do tempo dos nossos pais" um verdadeiro susto. Para os néscios, é um trunfo de que se orgulham... porque, assim, podem anunciar que o desemprego voltou a baixar!

Faço minhas as palavras acima, que orgulhosamente adaptei do meu papá e da minha mamã porque, mesmo retirando a emoção com que o viveram e agora escreveram, mesmo espremendo desapaixonadamente o que todos os nossos amigos e conhecidos nos transmitem, temos de reconhecer que, salvo algumas vírgulas, o que 25 de Abril trouxe consigo foi uma grande perversão de valores, humanos, sociais, políticos; trouxe consigo uma grande libertinagem quando se propunha trazer “apenas” a liberdade.

Bem, na verdade, não sei bem… acho. Eu até estava lá… mas não vi, não me dei conta. Mas, ainda que atrasados, ainda vamos a tempo. Claro que ainda vamos a tempo, se nos lembrarmos que “para termos resultados diferentes, temos de fazer coisas diferentes”. Estamos hoje melhor, muito melhor, do que estávamos no tempo da ditadura de Salazar.

Certamente, teremos de fazer uma outra revolução, uma que faça os nossos líderes falarem e actuarem sobre “direitos e deveres” (ao invés de termos governantes a falar exclusivamente de uns e opositores a falar unicamente dos outros), em que quem rouba um euro seja punido na mesma medida de quem rouba 60 milhões, em que a comunicação social (principalmente a de horário nobre, que chega e condiciona a opinião popular) seja fonte de informação e não de escandaleira de faca e alguidar, que só desvia a atenção e estupidifica a população, ao contrário de a educar. Desculpem-me, estou a ser utópico. Mas não foi por uma utopia que se fez o 25 de Abril?

Sugerir correcção
Comentar