Privacidade? Nunca ouvi falar

O estandarte da segurança global anti-terrorista também costuma ser orgulhosamente erguido em nome das invasões de privacidade. Perante tudo isto, a minha única pergunta é: qual é o espanto?

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Thomas Peter/Reuters

A primeira notícia que vi esta quarta-feira dizia que a Google assume que vê os emails de toda a gente. Dizem que é apenas para gerar conteúdos publicitários especificamente direccionados aos seus utilizadores, mas custa a crer que seja tão linear assim. Também não se trata de quadrilhices ou de uma busca de tendências que sirva de variante ao “hashtag”. O estandarte da segurança global anti-terrorista também costuma ser orgulhosamente erguido em nome das invasões de privacidade. Perante tudo isto, a minha única pergunta é: qual é o espanto?

Na era gloriosa da tecnologia e da globalização, não há como escapar ao olhar de quem quer que seja. As dúvidas são as de sempre: quem guarda os guardas? Quem está a ver enquanto vivemos? Quem nos vasculha os dias enquanto passamos por eles? Ninguém sabe ao certo. Cheio de razão estava o Orwell, essa é que é essa.

Regressemos, pois então, aos clássicos: Michel Foucault, num dos seus maravilhosos livros, chamado “Vigiar e Punir”, conta a história de uma prisão onde a vigilância assumia um papel fulcral. Desenhada num formato redondo, o cárcere possuía ao centro uma torre onde os guardas poderiam passar todo o tempo vendo o que se passava em cada cela. No entanto, um potente foco de luz cegava os prisioneiros e nunca ninguém sabia ao certo se estava ou não a ser observado. Na dúvida, comportavam-se exemplarmente.

Não concordo e não acho ética a prática de vigilância. Mas considero que não há volta a dar, é uma questão pura de adaptação. Não há escapatória possível. Na “web”, quer queiramos quer não, “privacidade” é um conceito inexistente. E quem existe no mundo real tem de estar na web. Caso contrário, não é vivo, não conta para a estatística. É por isso, natural que, dentro de algumas décadas, “privacidade” seja um conceito estrangeiro, estranho às gerações que ainda estão por vir.

Como tal, e levando em boa conta o caso paradigmático revelado por Foucault, também nós não temos remédio: na dúvida, não sabendo se devemos ou não ser atrevidos nas informações que buscamos, temos de comportar-nos exemplarmente. Como se estivéssemos debaixo de apertada vigilância. Se queremos descobrir algo mais sensível, temos de voltar para trás no tempo. Apostar no boca-a-boca e pôr as gentes a mexer.

Portanto, é isto: se quiserem falar de matérias sensíveis, ressuscitem os pombos-correio ou mandem uma carta pelos CTT. Ou, ainda melhor, vão tomar um café num sítio cheio de gente e falem baixinho. E leiam livros de espionagem, esses também dão boas dicas para escapar às vistas dos outros.

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