“Páginas Escolhidas” de Samuel Johnson

“Páginas Escolhidas” apresenta alguma oscilação na pertinência dos textos, não deixando de ser um livro valioso para o leitor mais exigente, para o crítico literário, ou para o jornalista

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Escrever sobre a criação literária de Samuel Johnson (1709-1784), quando o próprio autor afirma “ cada homem pode ter critérios de apreciação sobre os trabalhos dos outros; e aquele a quem a natureza fez fraco e a preguiça mantém ignorante pode sempre fortalecer a sua vaidade assumindo-se como crítico”, é um exercício crítico sob o signo do sarcasmo do autor inglês.

Doutor Johnson dotou a sua multidisciplinar obra com ironia, reflexão, imaginação e lucidez. A amplitude temática é o efeito da capacidade intelectual de Samuel Johnson, homem dedicado ao ensaio, crónica, poesia, biografia, lexicografia e crítica literária. Em “Páginas Escolhidas” (Quetzal), a presença da ironia é uma constante, destacando-se em “Como os abutres vêem o homem”, onde a ave necrófaga adjectiva o homem como benfeitor da espécie, pois “é o único animal que mata aquilo que não devora” A exegese sobre o papel do leitor, do escritor e do crítico está presente em vários dos textos de “Páginas Escolhidas”.

Muito antes da tão propalada Morte do Autor por Foucault, Derrida e “algum” Barthes, já Johnson abordava — embora sem nomear — esse aspecto particular na relação entre obra e autor. O “Ensaio sobre os Epitáfios” é demonstrativo da sua acutilante e irónica análise sobre a autoria. Com respeito à veneração da memória, afirma nem sempre ser desejável enumerar as façanhas ou qualidades de determinada individualidade, pois “pensar que estas Informações sejam necessárias é trair os seus Caracteres; ou supor que as suas Obras são mortais, e que os seus Êxitos correm o risco de ser esquecidos. O simples Nome desses Homens corresponde ao Objectivo de uma longa Inscrição”.

A preocupação com a posteridade e, no campo literário, com o cânone é transversal a vários textos. Podemos conferir essa especial atenção, por exemplo, no ensaio “Em total defesa dos censores das artes do palco”. Sempre sob o prisma da ironia e até do sarcasmo, Johnson aborda a (ir) relevância de se ficar ou não para a posteridade quando comparada com a importância de se viver o presente com dignidade e honestidade.

No conjunto de 16 textos, há, entre ensaios promotores de estudos mais aprofundados, uma parábola com a capacidade de demonstrar o pensamento do autor sobre os percursos possíveis de uma existência. “A visão de Teodoro, o eremita de Tenerife, encontrada na sua cela” é uma viagem simbólica, que parece dialogar com “A Divina Comédia”, de Dante.

No entanto, há oposição entre Morte (em Dante) /Vida (em Johnson), percurso descendente (inferno) /ascendente (montanha), desespero/esperança: “Filho da Perseverança, quem quer que sejas, e cuja curiosidade te trouxe até aqui, lê e sê sábio”.

“Páginas Escolhidas” apresenta alguma oscilação na pertinência dos textos, não deixando de ser um livro valioso para o leitor mais exigente, para o crítico literário, ou para o jornalista.

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