A carnificina ucraniana

Kiev arde sob o olhar frio do maquiavelismo de diplomatas americanos que mandam os europeus dar uma volta (não posso reproduzir o que foi dito), de governadores com tiques imperialistas e de profetas da economia

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Vasily Fedosenko/Reuters

A Ucrânia, tal como a Espanha em 1936, é palco de um jogo de xadrez de interesses políticos, interesses disputados pela União Europeia (UE), ou melhor pela Alemanha, e pela emergente Rússia de Putin. Mas, ao contrário da guerra civil espanhola, este conflito não é tão marcado por um choque ideológico. Não, a sua principal génese é político-estratégica. Esta Rússia, renascida na disputa das decisões internacionais, encheu o peito ao poderio alemão e impôs, de uma forma pouco discreta, a sua vontade de poder “putinista”.

A UE enviou vários ministros dos negócios estrangeiros (ainda bem que Rui Machete não foi, caso contrário o cenário de guerra civil avançava logo para a esfera de conflito internacional) com vista a negociar uma paz “limpa” assente em eleições presidenciais antecipadas e num projecto de alteração constitucional, ou seja, são ordens de Berlim e ordens de Berlim são para cumprir, obviamente. Negar tal evidência é cair numa ingenuidade sem propósito.

E Putin? O que falhou? O que acontecerá? Putin fragilizou Ianukovitch, pois colocou-o numa posição de comprador/vendedor em que o presidente ucraniano parece uma espécie de prostituta que aceita uma simples troca de dinheiro/sexo. E nisto a prostituta é mais digna, pois ela vende o seu corpo para conseguir viver e assume essa responsabilização. Pelo contrário, Ianukovitch vendeu o seu país e vendeu a quem deu mais. E, desta vez, quem pagou mais foi a Rússia. A intervenção de Putin no conflito — induzida ou não pela justificação mais fantasiosa — é perigosa, na medida em que abre o conflito às portas europeias e, inclusive, à diplomacia norte-americana. Outro aspecto interessante é a propaganda dos meios de comunicação russos que, quase ao jeito de rivalidade entre vermelhos/brancos do comunismo de guerra e russos/americanos da Guerra Fria, apelidam toda oposição de “fascistas” e “nazis”.

Por outro lado, Ianukovitch, com novos poderes de chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, vai esticar a corda até ao fim, tendo em conta que a sua liberdade — e até a sua vida — acaba a partir do momento em que desiste e se ajoelha, definitivamente, à oposição. Um fim sem honra que faz lembrar a cabeça de Khadafi a rolar pelo chão como uma bola, tal como a tortura de toda a família e da classe política apoiante do mesmo. São despojos de guerra que, por momentos, fazem esquecer os cerca de 2.500 feridos e dos 80 mortos (estes dados são os que disponho do momento em que escrevo). A carnificina política não pode esconder aquilo que é o jogo compulsivo de interesses próprios sem olhar à vida e à dignidade humana. Homens, mulheres, crianças, tudo é levado pela maré do ódio, num contexto em que nos só vai chocar durante uma semana, ou talvez semana e meia, dado que somos formatados a absorver, sentir compaixão e a esquecer, voltando, de seguida, à reflexão dos nossos problemas. Triste, mas é a realidade.

Em conclusão, tal como já escrevi há uns tempos sobre o mesmo assunto, este conflito, que também trouxe à tona o aproveitamento do mesmo pelos revoltosos da extrema-direita, surge como um empecilho difícil de resolver para a diplomacia europeia, porém a prepotência e a vaidade de Putin, já referida pela maneira como tratou o presidente Ianukovitch, pode ter sido um deslize que Merkel não vai desperdiçar. Entretanto, Kiev arde sob o olhar frio do maquiavelismo de diplomatas americanos que mandam os europeus dar uma volta (não posso reproduzir o que foi dito), de governadores com tiques imperialistas e de profetas da economia. Assim, o mundo gira.

P.S.: Os meus agradecimentos a José Milhazes. Os seus artigos e relatos constantes acerca do acontecimento têm sido fontes fundamentais para eu entender o assunto e escrever sobre o mesmo.

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