O sonho não comanda coisíssima nenhuma

O português quando nasce, nasce sempre para ser grande. Mas por qualquer razão nunca passa de mais um pequenino. E a culpa nunca é dele. É da crise, dos mercados, da Europa, do azar ou do Topo Gigio

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Flavia Costa

A minha empregada doméstica chama-se Deolinda. Tem 42 anos e quando era jovem sonhava ser fadista. Ainda chegou a cantar em casas de fado, mas nunca conseguiu viver das cantorias. E um dia teve de deixar cair o xaile, desistir dos sonhos de menina e pegar num espanador para limpar o pó dos outros. E ainda bem! Porque se ela fosse fadista, quem é que hoje me limpava a casa e me engomava as camisas?!

A ideia de que o sonho comanda a vida é o maior disparate enraizado e repetido vezes sem conta numa sociedade que adora olhar para a lua através do ralo do esgoto onde vive. Os portugueses, em vez de meterem a mão e começarem a limpar a porcaria que têm à volta para arrepiar caminho até à saída, preferem sonhar que é possível sair do esgoto com asinhas. Ou que alguém (quase sempre o Estado) os deve ajudar.

O português quando nasce, nasce sempre para ser grande. Mas por qualquer razão nunca passa de mais um pequenino. E a culpa nunca é dele. É da crise, dos mercados, da Europa, do azar, do governo, da oposição, da falta de ajudas, das cunhas, dos políticos, do capitalismo, do sistema ou do Topo Gigio. Existe sempre uma miríade de desculpas sibilinas. O mundo parece conjurar contra este ser predestinado a conquistar um lugar ao sol, mas deixado ao relento não se sabe muito bem por quem nem pelo quê.

Estes Rómulos de Carvalho de pacotilha esquecem-se que eles até podem ser bons e querer muito uma coisa. Mas o mais normal é existir alguém ainda melhor e a querer ainda mais do que eles. O que é uma chatice. Porque isto de serem só os melhores a ficarem com as profissões com mais garbo é um atentado à húbris lusitana.

A Deolinda só não é Mariza, porque a Mariza foi melhor do que ela. E os portugueses (eu em particular) agradecem terem ganho uma excelente fadista e uma boa empregada doméstica. Parece-me uma “lapalissada” que quem é bom chega lá. E quem é menos bom fica com o que há. Feita as contas: cada um tem o que merece. E não há nada de errado nisso. Bem pelo contrário. É justo e socialmente desejável que esta competitividade impere sobre as quimeras de cada um.

Porque se a vida fosse um filme e se todas as pessoas vivessem daquilo que gostam, o mundo seria um local estranho. Não existiriam homens do lixo, contínuos de escola, manicuras, cangalheiros, caixas de supermercado, estafetas, auxiliares administrativas, empregados de balcão, padeiros, pedreiros ou porteiros. Profissões com as quais ninguém sonha e que ninguém quer. Mas das quais toda a gente precisa!

O sonho comanda a vida dos poetas. Para o resto da plebe, sonhar é funesto. E é o acordar que importa. É o deixar de ser infantil. É o não ter medo de desistir quando todos dizem “não desistas”. É o realizar que há alguém melhor que nós e que, por isso, há que fazer outra coisa.

Mesmo que isso implique fazer algo nos antípodas do que se estudou ou receber um terço do que se sonhou (ou mesmo nada nos primeiros tempos). Porque cada um é pago por aquilo que vale. E a verdade é que todos começamos por valer muito pouco. E não é por se ter uma vulgar licenciatura à bolonhesa que as coisas deixam de ser o que são.

O povo diz que sonhar não custa. Pois não. E por isso é que também não vale nada. E como as empresas se estão a marimbar para os sonhos dos aspirantes a doutores e engenheiros, o melhor é estes baixarem a crista do especial e vestirem a farda do banal.

Todas as profissões são importantes. E aqueles que acham que devem ser jacarés em vez de lagartixas, só porque sim, são uns possidónios socialmente irresponsáveis. Embora adorem passar aquela imagem do desgraçadinho trovador da liberdade, igualdade e fraternidade.

Termino este texto ao mesmo tempo que a Deolinda entra no escritório para me dizer que a “casa está pronta”. 

— “Muito obrigado Deolinda”, digo-lhe eu.

— “Ora essa, não precisa de agradecer. Paga-me para isto, não é? O que importa é haver trabalho para fazer. Por isso eu é que agradeço”, responde-me ela.

A Deolinda nunca terminou o ensino secundário. Mas é mais inteligente, esperta e feliz que uma carrada de jovens amestrados deste país.

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