“We are the World”, aqui ou em África

Das centenas de vezes que ouvi a música nunca o tinha feito com “teledisco” ao vivo e total coordenação entre letra e imagem. Percebi então que continua actual

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Mike Hutchings/Reuters

Em Janeiro de 2015 completam-se 30 anos sobre um dos maiores sucessos discográficos da indústria norte-americana. Composta por Michael Jackson e Lionel Richie, a música “We are the World” reuniu 45 dos maiores nomes da altura e tornou-se um sucesso global que parecia ser capaz de mudar o mundo. Hoje, e apesar da réplica recente de ajuda às vítimas dos terramotos no Haiti, o mais que consegue é transportar-nos para os anos 80 e manter-nos aí durante os cerca de sete minutos que demora.

Há uns dias, porém, vivi com ela uma experiência arrepiante. Em Luanda, numa das recorrentes fugas ao trânsito infernal que caracteriza a capital de Angola, o motorista que me guiava tentou sair da Samba por entre um dos muitos musseques (bairros de lata) que povoam toda aquela área. Era um dia de calor impossível que aquecia as muitas lagoas provocadas pela chuva intensa do fim de semana.

Tomaz, o motorista, abriu o vidro e pediu a um dos vendedores que animam as ruas da cidade um CD de “slows”. E não era um qualquer. Queria o álbum dos melhores “slows” americanos. O vendedor saiu disparado e minutos depois, cinco metros à frente, aparecia no vidro do jipe com o CD como novo. Capa produzida em casa, interior gravado à pressa, mas com um serviço que nenhuma multinacional de venda de música faria de forma tão eficiente naquele lugar incaracterístico. Nem com drones.

No exterior viam-se pessoas no chão, deitadas nas pedras. Crianças nas costas das mães, em sonos desmaiados pelo calor. Idosos descalços na terra escaldada. Poças de água turva repletas de mosquitos. Via-se lixo em abundância, como se o chão fosse um enorme repositório comunitário. Viam-se as portas abertas das casas sombrias, terrivelmente minúsculas. Viam-se os cães doentes misturados com crianças. Viam-se sorrisos, é certo. Mas a esperança era forçada, copiada de uma qualquer novela da Record.

É nesse instante que a primeira música do CD começa a tocar. E diziam Lionel Richie, Stevie Wonder, Paul Simon, Kenny Rogers...: “There comes a time when we hear a certain call / When the world must come together as one / There are people dying / And it's time to lend a hand to life / The greatest gift of all”. Gelei. Das centenas de vezes que ouvi a música nunca o tinha feito com “teledisco” ao vivo e total coordenação entre letra e imagem. Percebi então que continua actual e que se mantém a urgência de redução das assimetrias.

É certo que Angola terá condições para resolver de forma praticamente autónoma muitos dos problemas sociais com que vive, embora ainda assim apresente uma das maiores taxas mundiais de mortalidade infantil. Mas quanta África profunda não necessita de ajuda imediata? Quantas crianças continuam a morrer a cada segundo que passa? Quantas famílias lutam diariamente por um pedaço de pão? Quantas fogem à guerra impiedosa? Quantos crimes continuam impunes?

Todos sabemos: a informação aumenta a nossa resistência ao choque. Mas o facto de os nossos olhos aguentarem melhor a imagem do terror não significa que ele deixe de existir. Existe e aumenta. E por muito que desvalorizemos o país onde vivemos, olhemos para África para percebermos o que temos. A sorte que temos. É por isso tempo de um novo despertar por África. Se somos o mundo, olhemos para ele por igual. Sem arrogância, sem sobranceria, sem falsos altruísmos. Tenha esse país muito dinheiro ou quase nenhum. Fale a nossa língua ou qualquer outra. Porque em África também se ouve o “We are the World”. Infelizmente... o mesmo há quase 30 anos.

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