Filipa chorou “desalmadamente” quando viu suspenso o sonho de ser mãe

Depois de 1300 euros investidos, mulher viu suspenso tratamento para engravidar com dador anónimo. Especialistas defendem “regime transitório” e lembram que o próprio Tribunal Constitucional admite o anonimato quando haja “razões ponderosas”.

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Os centros de fertilização foram obrigados a suspender tratamentos com recurso a dadores anónimos Nuno Ferreira Santos

A notícia atingiu Filipa Sousa com a eficácia de um tiro à queima-roupa. “Na segunda-feira, quando esperava o telefonema de uma enfermeira a marcar a data da segunda tentativa [de inseminação], quem me ligou foi o meu médico a dizer que, afinal, o tratamento não podia continuar. Chorei desalmadamente, como se não houvesse amanhã”, recordou ao PÚBLICO.

À beira de completar os 37 anos de idade, Filipa é uma dos milhares de pessoas afectadas pela orientação dada sexta-feira pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) aos cerca de 30 centros de fertilização existentes no país no sentido de suspenderem os tratamentos de fertilização com recurso a dadores anónimos. Estes só poderão continuar quando se consiga obter dos dadores autorização para a utilização dos embriões ou gâmetas doados no pressuposto do anonimato a que o Tribunal Constitucional veio pôr fim.

“Já andava com níveis de ansiedade altos, porque o processo é de si muito melindroso psicologicamente, por mais fortes que sejamos em termos emocionais. Tinha gastado 900 euros na primeira tentativa, que não resultou, e, para esta segunda tentativa, já ia em 400 euros de gastos, entre ecografias e injecções de estimulação hormonal. Mas o pior é que sei que daqui a cinco ou seis meses o meu corpo já não responderá da mesma forma. E o meu receio é que o problema desencadeado pelo Tribunal Constitucional fique agora metido numa gaveta sem solução à vista”, acrescenta esta candidata a mãe que, por não ter parceiro, decidira fazer inseminação com recurso a dador anónimo.

“Sempre quis ser mãe biológica, sabendo que reúno todas as condições psicológicas, financeiras e o apoio de familiares e amigos. Quando, no final de Agosto, iniciei o processo - e fi-lo no privado para evitar as listas de espera a que estaria sujeita no sector público - nada fazia duvidar da normalidade na aplicação da lei [que alargou a procriação medicamente assistida às mulheres sozinhas].Quem podia esperar que, dois anos após a vigência de uma lei, a vida de tantas pessoas seria colocada em suspenso?”, enquadra Filipa Sousa, recuperando os argumentos que expôs na carta que enviou, entretanto, ao CNPMA, seguida de um apelo escrito ao presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

"Um grupo silencioso"

Filipa não está sozinha. Segundo Alberto Barros, director de um centro de fertilidade, o fim do anonimato dos dadores afecta milhares de pessoas que constituem “um grupo silencioso que não vai manifestar-se em frente ao Parlamento nem à porta do Tribunal Constitucional (TC) porque vive o problema no recato familiar”. Em causa está o facto de, à boleia do pedido de verificação da constitucionalidade da lei que regulamenta a gestação de substituição, o TC ter considerado que a regra do anonimato dos dadores de material genético com vista a possibilitar a fecundação da mulher atenta contra o direito à identidade pessoal e genética da criança.

Na sequência deste acórdão, o CNPMA perguntou em comunicado pelo destino a dar aos embriões criopreservados produzidos com recurso a gâmetas de dadores anónimos. E anteviu uma “redução significativa dos potenciais dadores com repercussões negativas para os beneficiários”, alertando ainda para a discriminação que daqui resulta entre a compatibilização do direito das pessoas nascidas com recurso a gâmetas ou embriões doados em regime de anonimato com o direito dos dadores à manutenção do sigilo quanto à sua identidade legalmente consagrado à data da doação”.

No centro de PMA dirigido por Vladimiro Silva, o remédio para não suspender os tratamentos em curso foi recorrer ao banco de esperma da Dinamarca, que trabalha com doadores não anónimos, por um lado, e, por outro, telefonar a alguns dadores que se disponibilizaram para abdicar da garantia de anonimato.

Reacção "defensiva e prudente"

Porém, a longo prazo, o especialista acredita que num país que, como Portugal, sofre de uma crónica falta de dadores mesmo sob anonimato o que está em causa é a possibilidade de continuar a assegurar os tratamentos de procriação medicamente assistida. “Muitos dos tratamentos estavam a ser feitos por via da importação de células a partir de Espanha, mas este recurso fica agora também posto em causa porque em Espanha vigora o anonimato que deixamos de poder garantir”. No limite, conclui Vladimiro, “a questão que se colocará não é a de saber se a criança tem ou não direito a conhecer o pai mas a nascer ou a não nascer”.

Sem condenar a reacção “defensiva e prudente” do CNPMA, o médico alcandora-se no próprio acórdão do TC e nas leituras contraditórias que dele fazem vários constitucionalistas para defender que há aqui a possibilidade de criar um regime de transitoriedade que permita prosseguir com os tratamentos sem desperdiçar o material genético já doado. “O tribunal não baniu instantaneamente o anonimato. No artigo 80.º, admite a possibilidade de anonimato dos dadores quando haja razões ‘ponderosas’ para tal”, recorda. Ora, no seu entender, e à semelhança do que se passou em Inglaterra, aquando da transição para o não anonimato, deveria criar-se um período de transição em que vigoraria um sistema misto: “Os dadores com material já doado que queiram continuar anónimos devem ser autorizados a tal, vigorando o princípio do não anonimato para as doações feitas a partir de uma determinada data.”

Este regime de transitoriedade faz sentido também para Alberto Barros porque só assim será possível evitar a suspensão dos tratamentos em curso e a descongelação e a eliminação de “centenas e centenas de embriões” que foram doados no pressuposto do anonimato.

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